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O lado livre da internet

Em quem você confia?

Será que bancos e cartórios podem ser substituídos por confiança coletiva?

Por Nelson Lago
Atualização:
FOTO: vaibhav ahuja  Foto: Estadão

A vida em sociedade pressupõe confiar nos demais. Essa ideia pode soar estranha; afinal, não há o medo da violência, a corrupção ou tantos outros problemas? Claro, mas esses casos são excepcionais. Pensamos que a confiança não é a regra simplesmente porque ela é tão comum que sequer nos damos conta. Por exemplo, ao atravessar a rua quando o semáforo fecha para os carros você confia que nenhum motorista vá ter um ímpeto homicida e acelerar por cima de você; ao visitar seu dentista, você confia que ele não vai usar o motor para danificar seus dentes; ao fazer uma compra com seu cartão, você confia que a máquina do lojista não foi adulterada.

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Ainda assim, às vezes as pessoas cometem erros, às vezes agem de má-fé e às vezes duas pessoas entendem diferentemente o significado de um acordo, e é por isso que temos fechaduras, bancos, cartórios e um sistema judicial. Mas fechaduras, bancos, cartórios e o sistema judicial não eliminam a necessidade da confiança, apenas deslocam-na de lugar: você confia que o fabricante de fechaduras não vai vender cópias da sua chave para terceiros, confia que o banco não vai sumir com seu dinheiro, confia que o cartório vai manter os documentos registrados sem adulterá-los e confia que o sistema judicial vai executar com fidelidade a Lei. Ou seja, confiamos na maioria das pessoas na maior parte do tempo, mas também construímos instituições (bancos, governos, empresas...) que consideramos confiáveis para intermediar diversas atividades do nosso dia-a-dia.

Esse mecanismo tem funcionado razoavelmente bem há séculos, mas tem dois defeitos importantes: primeiro, aquele que recebe esse papel passa a ter mais poderes nas interações sociais e vários incentivos adicionais para trair essa confiança, como se vê comumente nas "carteiradas", nos casos de corrupção e de desvios de verbas; segundo, passa a ser muito interessante para terceiros conseguir fraudar uma dessas pessoas ou entidades, o que às vezes depende apenas de uma assinatura. Seria muito melhor se pudéssemos criar um mecanismo de deslocar nossa confiança independente de uma autoridade central desse tipo.

Você provavelmente já ouviu falar em Bitcoin, a "moeda virtual". O sistema Bitcoin permite que transações financeiras sejam realizadas com confiabilidade sem que haja uma entidade central, como um banco ou governo, responsável pela moeda e sua circulação. Como isso funciona? Bitcoin depende de um conjunto de computadores para processar as transações, mas esses computadores não pertencem a ninguém específico: qualquer usuário de Bitcoin (com um computador suficientemente poderoso) pode participar do processo (e há um incentivo econômico para isso). Esses vários computadores trabalham continuamente em conjunto para atingir um consenso sobre as transações realizadas, e mesmo que haja computadores mal-intencionados, existem diversas salvaguardas que garantem que o consenso do grupo exclui transações falsas ou inválidas. Assim, a força do Bitcoin vem do fato de que a veracidade das transações é garantida não por um agente central mas por um conjunto relativamente grande de pessoas diferentes, que dificilmente trabalhariam em conjunto para fraudar o sistema.

Além desse trabalho em equipe, o principal truque do Bitcoin é que cada transação registrada armazena, além dos dados da transação correspondente, uma referência à transação anterior. Essa referência (um hash criptográfico) depende intrinsecamente dos dados dessa transferência anterior e, graças a isso, não é possível modificar uma transação passada: isso faria a referência na transação seguinte ser inválida e, com isso, todas as demais também, tornando essas situações muito fáceis de detectar. Assim, a confiança do sistema se baseia em dois princípios: primeiro, o consenso dos computadores que elegeram as transações como válidas e, segundo, o algoritmo matemático que assegura que os dados armazenados são imutáveis. Esse mecanismo é chamado blockchain e garante que (1) todas as transações são válidas de acordo com as regras da moeda Bitcoin (pois os computadores entraram em consenso a respeito); (2) nenhuma transação que ocorreu desapareceu do histórico (caso contrário a transação seguinte à transação faltante se tornaria inválida); (3) nenhuma transação que não ocorreu foi inserida no histórico (pela mesma razão); e (4) sabe-se o momento aproximado no tempo no qual cada transação aconteceu.

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Além de o processo de validação ocorrer sem a presença de um agente central, uma outra característica interessante do mecanismo de blockchain é que as informações sobre a autenticidade das transações é pública e vários computadores têm uma cópia do histórico, ou seja, qualquer um pode consultar os dados e verificar se uma dada transação foi validada, também sem depender de qualquer agente central ou "senha" especial. Ao mesmo tempo, graças às técnicas matemáticas envolvidas, a informação da transação em si pode ser mantida privada: o blockchain é capaz de garantir que a transação número "ABC123" foi realizada num determinado momento mesmo sem ter acesso ao seu conteúdo. E, mesmo assim, com a certeza de que esse conteúdo não foi modificado! É por isso que blockchain tem o potencial de tornar obsoletos cartórios, certificadoras digitais e até mesmo instituições financeiras.

Como mencionado antes, há um incentivo econômico para que os usuários participem do processo de consenso; por conta disso, muitas pessoas acreditam que o sistema de blockchain só pode ser usado com sucesso para moedas virtuais como o Bitcoin. No entanto, muitas outras defendem o uso do mecanismo para autenticar os mais variados tipos de transação, como pagamento de impostos, registro de propriedade de imóveis ou emissão de documentos. O uso desse sistema poderia garantir, por exemplo, que o pagamento de um veículo e a transferência de sua propriedade acontecem simultaneamente, impedindo roubos e fraudes, além de dar melhores garantias sobre o controle de acesso a dados sigilosos ou a determinação de responsabilidades dentro e fora dos governos.

No contínuo empurra-empurra entre sistemas centralizados (como as redes sociais atuais e o software fechado) e sistemas descentralizados (como redes ponto-a-ponto e o software livre), blockchain é mais uma peça no quebra-cabeças da tecnologia e da sociedade do futuro. Além disso, é um assunto da moda: bancos e outras instituições financeiras, além de governos, têm buscado maneiras de se beneficiar dessa técnica. Nada mal para um sistema de confiança criado por alguém que ninguém sabe quem é e no qual não é preciso confiar em ninguém!

* Nelson Lago é gerente técnico do CCSL-IME/USP

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