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O lado livre da internet

O Coletivo Saravá e a liberdade na internet no Brasil

Grupo que oferece serviço de hospedagem para clientes em busca de privacidade corre o risco de ter seus equipamentos retidos pela PF

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Por CCSL
Atualização:

Por Nelson Lago*

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Nesta sexta-feira, o coletivo Saravá divulgou uma nota informando que, por conta de um processo que corre em segredo de justiça, é provável que seu servidor principal seja apreendido bem neste momento de comemoração quanto à aprovação do Marco Civil. O grupo continua o texto explicando que se trata de um processo envolvendo uma rádio não-autorizada gerida, supostamente, por usuários do servidor, e que não há dados armazenados que possam auxiliar na identificação desses usuários.

O servidor em questão abriga diversas comunidades e usuários com diferentes interesses e objetivos. Sua apreensão atinge diretamente esses usuários e sua privacidade, muitos deles totalmente não-relacionados com o caso investigado. Vale lembrar que, recentemente, houve grande indignação quando uma promotora solicitou a quebra de sigilo telefônico celular justamente porque a quebra, para além dos usuários de interesse à investigação, atingia também outros usuários no Palácio do Planalto. Mas, se todos são iguais perante a Lei, o mesmo princípio deve ser aplicado a outros contextos. Também é preciso observar que, por outra razão, o mesmo grupo teve seu servidor apreendido em 2008 e nunca mais teve acesso a ele. É evidente que qualquer investigação técnica sobre um servidor desse tipo pode ser realizada satisfatoriamente em questão de dias; mais uma vez, o interesse de diversos usuários sequer relacionados com o caso em questão foi aviltado.

No contexto da computação em nuvem, uma ação similar implicaria não apenas a apreensão de um servidor abrigando sistemas completamente independentes, mas muito provavelmente o sistema de armazenamento de dados compartilhado responsável por centenas de máquinas e milhares de clientes do operador de nuvem. Seria o equivalente a paralisar o funcionamento de um shopping center com centenas de lojas para investigar a possível responsabilidade de um funcionário ou cliente num caso sem qualquer relação com o shopping em si.

Nas recentes discussões sobre o Marco Civil, muito se disse sobre a importância da proteção aos direitos individuais frente aos abusos que a tecnologia permite ao Estado. A despeito das boas intenções, é triste observar que a melhor solução para que o Coletivo Saravá esteja livre de intervenções similares no futuro é alocar seu servidor em território norte-americano, país em que, pelo menos no tocante às empresas e pessoas lá sediadas, ataques à privacidade são muito mal vistos. Uma eventual solicitação de apreensão similar feita pelo judiciário brasileiro ao governo daquele país dificilmente seria aceita, o que coloca o Brasil não na vanguarda, como gostaríamos, mas na retaguarda da proteção às liberdades individuais na Internet.

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O fato suscita ainda outras questões. O processo existe por conta do suposto apoio a rádios não-autorizadas. Mas, se regulamentação do uso do espectro eletromagnético para radiodifusão existe por conta da necessidade técnica, dado que esse espectro não é ilimitado, também é verdade que diversos grupos pressionam há muito por uma legislação mais branda nessa área para dar espaço às rádios comunitárias e outras, de caráter não-comercial e de baixo alcance. Essas pressões obtiveram algum sucesso com a Lei 9612/98 que, no entanto, ainda impõe um grande número de dificuldades para a implantação de rádios desse tipo. Essa questão ganha proporções ainda maiores no momento atual, em que a iminente eliminação da transmissão de TV analógica no Brasil libera para outros usos uma fatia considerável do espectro eletromagnético. Se, de um lado, as empresas estabelecidas de radiodifusão e outras mídias têm forte interesse numa regulamentação restritiva para essa fatia, de outro, muitos grupos menores esperam que essa nova regulamentação abra as portas para um uso mais informal e livre da tecnologia de radiodifusão.

A tecnologia atual permite um acesso mais aberto e democrático ao espectro eletromagnético, e a relevância dada ao Marco Civil pela população dá mostras do quanto a questão do respeito ao indivíduo ganhou espaço no Brasil pós-ditadura. Cabe ao poder público levar à frente essas mudanças na Lei e na sociedade, mas a aplicação truculenta da Lei atual não se apresenta como um bom prenúncio do que está por vir.

* Nelson Lago é gerente técnico do CCSL-IME/USP

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