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O lado livre da internet

O produto é você

Todas as empresas de Internet se baseiam no mesmo modelo de negócios. E agora?

Por Nelson Lago
Atualização:
FOTO: Nicolas Nova  Foto: Estadão

Na semana passada, a Spotify implantou uma pequena mudança nos seus termos de serviço. Segundo a empresa, a mudança não foi relevante: os termos anteriores eram similares em espírito. Ainda assim, a mudança chamou a atenção dos internautas, que se espantaram ao perceber que, se você é usuário pagante do serviço, você "autoriza expressamente o spotify a usar e compartilhar [...] com determinados parceiros de negócios e prestadores de serviços confiáveis, que poderão estar localizados fora do país de sua residência [...], as informações fornecidas por você ao spotify, mesmo se tais informações estiverem abrangidas por leis locais de sigilo bancário" e "renuncia expressamente aos seus direitos previstos nessas leis de sigilo bancário com referência ao spotify, a qualquer empresa no grupo spotify e a quaisquer parceiros de negócios e prestadores de serviços confiáveis, que poderão estar localizados fora do seu país de residência". Os termos também dizem que as informações coletadas podem ser usadas para "fornecer [...] recursos e anúncios dentro e fora do Serviço" e "para nos comunicarmos com você, diretamente ou ou por meio de um de nossos parceiros, para fins de marketing". Parece que o usuário abre mão de muita coisa pelo privilégio de pagar pelo serviço da Spotify!

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Ao que tudo indica, a discussão que surgiu levou a Spotify a rever os termos: a versão atual não utiliza mais a expressão "sigilo bancário", embora mantenha o espírito original, e acrecenta uma frase esclarecendo que o uso desses dados é "para o fim exclusivo de viabilizar o pagamento do serviço contratado por você". No entanto, o evento foi interessante por nos fazer recordar o volume de dados que as diversas empresas de Internet coletam a respeito de seus usuários. Embora a última versão dos termos seja mais cuidadosa no tocante aos dados de pagamento, ela ainda elenca a enorme quantidade de outras informações que a empresa pode coletar e utilizar praticamente sem restrições. Considerando-se que esses termos se aplicam mesmo aos usuários pagantes do serviço, há de se pensar sobre o papel da propaganda e da publicidade no que chamamos hoje de "Internet" -- e, em certo sentido, da nossa sociedade.

Nos primórdios da popularização da Internet, a partir de meados dos anos 90, a questão da viabilidade econômica dos serviços e empresas na rede ainda era uma incógnita. Muitos apostavam que havia muito dinheiro a ser ganho online, mesmo sem clareza a respeito do como, o que acabou culminando no famoso estouro da bolha "ponto-com" por volta do ano 2000. Nesse mesmo período, várias empresas, em particular empresas geradoras de conteúdo como jornais e revistas migrando para o ambiente da web, procuravam vender publicidade em seus sítios. No entanto, esses esforços não tiveram grande sucesso: a propaganda na Internet era vista na época como pouco relevante em termos de volume e pouco eficiente em termos de retorno. Como alternativa, algumas empresas e grupos de pesquisa buscavam implementar um sistema de micropagamentos, ou seja, pagamentos da ordem de centésimos de centavos. A ideia era que, ao acessar uma página ou sítio web, o usuário realizaria um pagamento desse tipo; o custo agregado do uso de várias páginas e sites seria relativamente baixo para o usuário mas, graças ao grande número de usuários, seria suficiente para financiar as empresas responsáveis pelos serviços online. Mas a ideia simplesmente "não pegou", tanto pela dificuldade técnica quanto porque a cultura aberta da Internet gerava uma grande aversão à ideia de pagar por conteúdo.

O problema com as empresas de conteúdo que buscavam vender propagandas em seus sítios era que elas tentavam reproduzir online o modelo de negócios que usavam nas mídias em papel. Para uma data publicação, em função do público-alvo, este ou aquele anunciante pagava para apresentar seu produto para os visitantes do site, geralmente na forma de banners. Algumas empresas, como a Doubleclick (hoje pertencente à Google), perceberam a Internet como uma oportunidade e implantaram um novo mecanismo de lidar com a propaganda online: o foco não é o veículo, mas o usuário. Ao acompanhar a navegação de uma pessoa em diferentes sites, é possível traçar um perfil de seus interesses e oferecer anúncios direcionados para cada pessoa, aumentando a taxa de clicks e vendas. O princípio por trás do sucesso da Google é similar: ao responder a uma busca, as propagandas apresentadas são relacionadas ao termo buscado, aumentando enormemente a relevância do anúncio para o usuário.

Diversos fatores colaboraram para o sucesso desse modelo: o aumento vertiginoso no número de usuários de Internet fez aumentar proporcionalmente os negócios e as verbas para propagandas; essas propagandas, agora menos intrusivas e mais interessantes para os internautas, passaram a ser razoavelmente bem aceitas como contrapartida para a oferta de conteúdo; e o conteúdo "gratuito", típico da Internet nos anos 90, continuou sendo acessível sem custos diretos.

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De fato, o modelo teve tanto sucesso que, hoje em dia, ele não é mais um mecanismo para viabilizar negócios na Internet; ele determina quais negócios existem e deixam de existir na rede. Todo o conceito, os recursos e o funcionamento do Facebook, uma das principais empresas de Internet atuais, é definido em função de como extrair dados sobre o perfil dos usuários para gerar propagandas mais eficientes. A Google utiliza produtos como o gmail para aumentar a qualidade do seu sistema de buscas, de um lado, e para melhorar os dados de perfil de seus usuários, de outro. Há quem diga que "se você não paga pelo serviço, você não é usuário, você é o produto", o que não deixa de ter um fundo de razão. Essa realidade tornou bastante raras outras formas de financiamento, já que o público espera acesso sempre gratuito ao conteúdo. Como consequência, jornais e revistas, que têm muito menos alcance em suas propagandas, vêm realizando grandes esforços na tentativa de vender o acesso a seus conteúdos através de assinaturas.

É aqui que entra a Spotify: a empresa oferece tanto acesso pago quanto gratuito a seus serviços, mas a maior parte de seus usuários não é pagante. Seu acesso é parcialmente financiado por verbas publicitárias mas, em grande medida, é visto como investimento pela companhia, que visa consolidar sua posição no mercado e atrair futuros clientes pagantes. Ainda assim, uma rápida leitura dos termos de serviço mostra o quanto a empresa está preocupada em possibilitar a exploração dos dados dos usuários, mesmo pagantes, da mesma forma que tantas outras empresas "ponto-com". E quem poderia criticá-la? É essa a regra do jogo.

Muito tem sido dito sobre os problemas que podem resultar dessa nossa cultura que, cada vez mais, rebaixa ao segundo plano a privacidade individual. Mas, para além disso, será que essa "monocultura" em termos de modelo de negócios é boa para a Internet? Quantos sítios, serviços e aplicativos interessantes e úteis deixaram de ser criados por não se enquadrarem nesse "mercado online" onde o único produto é o próprio usuário?

* Nelson Lago é gerente técnico do CCSL-IME/USP

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