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O lado livre da internet

Precisamos de software livre no governo?

Por que o governo federal está abandonando o software livre?

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Por Nelson Lago
Atualização:
FOTO: Alan Myers  Foto: Estadão

Recentemente, o governo federal iniciou uma parceria com a Microsoft com vistas a "promover segurança cibernética e transparência no país". Esse acordo surge no mesmo dia da criação do Centro de Transparência da Microsoft no Brasil, segmento da empresa responsável pela parceria.

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É no mínimo curiosa a escolha da Microsoft para cuidar desse assunto. A empresa não é especializada na área de segurança, e há diversos questionamentos a respeito de aspectos relacionados à privacidade dos usuários em relação a seus produtos; além disso, trata-se de empresa multinacional, que passará a ter, direta ou indiretamente, acesso a informações confidenciais ao longo de seu trabalho com segurança em parceria com o governo brasileiro; e, talvez mais importante, o governo federal tem, ou deveria ter, uma política que privilegia o software livre, que também não é área de expertise da Microsoft.

Cinco dias depois desse anúncio, o Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão demonstrou intenção de comprar um grande número de licenças de produtos Microsoft, visando (entre outros) "padronizar a tecnologia dos softwares aplicativos utilizados no âmbito da APF [Administração Pública Federal]".

Não é por acaso que essas ações apareceram simultaneamente; ambas estão evidentemente relacionadas a uma decisão estratégica do governo de afastar-se da opção pelo software livre e aproximar-se da Microsoft e seus produtos. Se, no passado, já havia uma tendência dispersa nessa direção, para todos os efeitos práticos a partir de agora agora trata-se de postura oficial; o software livre, pelo menos neste momento, falhou dentro do governo. Mas por quê?

Do ponto de vista técnico, o software livre em grande medida já demonstrou sua excelência, em particular no datacenter (embora, obviamente, as ferramentas livres não sejam perfeitas e algumas possam ser inferiores às concorrentes fechadas). Ainda assim, há dificuldades: a integração com plataformas legadas, o know-how preexistente com foco em outras tecnologias, os custos e mesmo a mera inércia são obstáculos para a modificação de sistemas governamentais, que sempre são de grande porte. No entanto, O treinamento e a adaptação para novas tecnologias são realidades constantes no mundo da tecnologia, e fugir das mudanças é apenas adiar o inevitável. Também é verdade que o MS-Office é considerado padrão de mercado e, embora exista ao menos uma excelente alternativa livre, sempre há dificuldades de interoperabilidade com esse "padrão". Mas, dado seu tamanho, o Estado teria plenas condições de adotar o Open Document Format (que é, inclusive, homologado pela ISO e pela ABNT), levando a sua maior adoção em todo o país e minimizando o problema específico da interoperabilidade no formato de documentos. Creio, portanto, que as dificuldades técnicas, por si só, não bastam para explicar essa tendência.

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Do ponto de vista financeiro, é comum que se defenda o software livre por não haver custo de licenças, diferentemente do que ocorre com a maioria dos produtos da Microsoft. Essa, no entanto, é apenas uma parte da história, já que licenças são uma parcela relativamente pequena dos custos das soluções de TI. Em um sem-número de casos, o governo depende da contratação de empresas para serviços de desenvolvimento, implantação, suporte etc. Nesses casos, dado o volume de gastos do Estado com TI, a escolha de empresas nacionais especializadas em software livre tem efeitos positivos sobre a economia brasileira, fomentando o mercado, e evita a saída de dólares do país, além de contribuir com a formação de know-how internamente. Assim, já é difícil acreditar que o uso de soluções não-livres possa acarretar economia direta significativa, e é mais difícil ainda acreditar que, dada a repercussão no mercado nacional, essa economia seja suficiente para justificar a escolha pelo software restrito a não ser em casos excepcionais.

Do ponto de vista político, levando-se em conta as revelações de Edward Snowden e a importância estratégica de uma forte indústria nacional de software em um país que já depende quase totalmente da importação no tocante ao hardware de TI, mais uma vez a escolha pelo software livre como regra deveria ser um consenso relativamente simples na esfera governamental.

O que nos leva ao ponto de vista pessoal: paradoxalmente, parece ser esse o ponto central na crescente migração do governo para o software restrito. O que faltou para que o impulso inicial dado pelo governo federal rumo ao software livre ganhasse cada vez mais corpo foi, justamente, a conquista de corações e mentes. A escolha de uma nova ferramenta tecnológica traz consigo o desconforto para aqueles que trabalham com ela: dificuldades de aprendizado e interoperabilidade, repetição de trabalhos já realizados para adaptação à nova plataforma e muitas outras questões precisam ser atacadas. Assim, um decreto ou norma dando preferência a soluções livres nunca vai ser bem recebido sem que haja, também, o entendimento das equipes sobre por que realizar esse investimento de tempo e esforço -- e sem que haja, também, o investimento financeiro necessário para solucionar os problemas relacionados. Isso só é possível com um trabalho recorrente de treinamento e suporte, além de campanhas de esclarecimento.

A comunidade de software livre, em vários momentos no passado, mencionou a decisão do governo brasileiro de privilegiar o software livre como uma vitória. Faltou a ela, no entanto, viabilizar essa vitória dentro da própria administração pública. Faltou também o empenho da classe política em abraçar essa escolha e torná-la prioritária; o discurso a favor do software livre ganhou a simpatia de parte do eleitorado, mas os resultados práticos sempre ficaram muito aquém do desejável, mantendo uma condição híbrida que nunca foi bem resolvida.

O resultado está aí. O que nos resta, agora, é voltar ao ativismo para garantir que este revés seja passageiro.

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* Nelson Lago é gerente técnico do CCSL-IME/USP

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