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Deu no New York Times

A trágica morte da Flip

Cisco resolveu matar a filmadora Flip; a culpa é mesmo dos smartphones?

Por David Pogue
Atualização:
 Foto: Estadão

Anteontem (terça-feira, 12) fiquei de queixo caído e ainda não consegui colocá-lo de volta no lugar.

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A Cisco está acabando com a filmadora digital Flip.

Vamos ver se consigo explicar: há apenas dois anos, a Cisco adquiriu a Pure Digital, a companhia que fabricava o Flip, por US$ 590 milhões. Na terça-feira passada, a Cisco anunciou que decidiu fechar toda a divisão e demitir 550 pessoas.

O ser humano é uma espécie racional. Nosso instinto nos faz encontrar razões, buscar padrões onde talvez não existam. Neste caso, a primeira reação de todo mundo é : "Ah, é por causa dos smartphones. Hoje em dia todo mundo está fazendo vídeos com iPhones -- ninguém compra mais as filmadoras digitais Flip".

Ou, como disse o blog Gizmodo: "A Cisco matou o Flip, pois é, mas a culpa é do smartphone que está no seu bolso". Parece lógico -- até que a gente se dá conta de que há uma explicação muito mais satisfatória.

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Em primeiro lugar, os smartphones, como o iPhone, representam apenas uma porcentagem mínima das vendas de celulares. Vocês sabem quem compra telefones de aplicativos? Gente rica, da Costa Leste/Oeste, culta, leitores do New York Times, os norte-americanos que escrevem no Gizmodo.

Mas a maior parte do mundo não compra iPhones. Em um bilhão de celulares vendidos anualmente, uns poucos milhões são iPhones. As massas ainda têm celulares comuns que não gravam vídeo, e muito menos vídeo em alta definição. São as pessoas que compram filmadoras digitais Flip. É realmente cedo demais para que os smartphones tenham tirado os Flips do mercado.

Em segundo lugar, não é verdade que ninguém esteja mais comprando câmeras Flip. Até o momento, foram adquiridas por sete milhões de pessoas. Um mês atrás, um gerente de produto Flip me falou do modelo mais novo, que deveria ser lançado no mercado na quarta-feira. Ele me mostrou um gráfico das vendas dos Flips; os Flips agora representam espantosos 35% do mercado de filmadoras digitais. São o Nº 1, a câmera digital mais vendida pela Amazon. E continuam vendendo bem.

Vejamos a coisa do seguinte modo: há muitas imitações da Flip, como da Kodak e de outras companhias, e eles desfrutam de apenas uma fração da popularidade do Flip, mas eles não estão fechando as portas.

E então por que a Cisco está fazendo isto?

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Falei com uma série de pessoas do setor, tentando, da minha maneira humana, entender a lógica da coisa. Parece claro que a Cisco, cujo objetivo principal é produzir equipamentos de rede para empresas, estava toda animada para entrar no jogo dos produtos eletrônicos; é por isso que gastou US$ 590 milhões com o Flip. Mas então, como disse John Chambers, diretor executivo da Cisco, a companhia decidiu tomar "medidas importantes, específicas, para alinharmos as operações em apoio a nossa estratégia de plataforma das redes".

O que significa: "Não tínhamos a menor ideia do que estávamos fazendo".

Tudo bem, ótimo. A Cisco abocanhou mais do que poderia comer. Mas por que está matando o Flip em vez de vendê-lo?

A razão mais plausível é que a Cisco quer a tecnologia do Flip mais do que o negócio. Afinal, a Cisco está no setor de videoconferência, e a qualidade de vídeo do Flip -- pelo seu tamanho e preço -- era surpreendente. Talvez, na realidade, o plano da Cisco tenha sido sempre este. Comprar o adorado Flip por sua tecnologia, e depois fechar a operação e demitir 550 pessoas.

Vocês já conhecem a primeira parte da tragédia. O Flip era um grande produto. Muito mais simples do que uma câmera de vídeo -- o aparelho tinha apenas um botão, Gravar/Stop -- e também muito mais simples do que um smartphone. Ele filma instantaneamente: sem precisar ligar, sem carregar com fita, sem abertura de tela, apenas apertando o botão Gravar, e assim por diante. Depois basta tirar o conector para transferir o que foi sido filmado para o Mac ou o PC: não precisa procurar um cabo, colocar no modo PC, e tudo aquilo. O software embutido permite que você elimine as partes ruins e que você poste no seu YouTube com dois cliques.

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Por ser tão rápido e simples, era possível captar instantes que se perderiam com outros aparelhos. Eu tenho todos os grandes vídeos do meu filhinho no assento traseiro do carro, porque de repente ele começava a cantar uma música engraçada inventada na hora, e eu pegava o Flip do console, apertava o botão e gravava. Não teria a chance de guardar estas coisas se tivesse um smartphone.

Mas há uma segunda parte da tragédia, também, uma coisa que ninguém sabe. O novo Flip que o gerente de produto me mostrou era espantoso. Chamava-se FlipLive, e acrescentava um novo recurso poderoso ao Flip comum: a transmissão ao vivo via internet.

Ou seja, quando você está num ponto Wi-Fi, o mundo inteiro pode ver o que você está filmando. Você pode postar um link ao Twitter ou Facebook, ou enviar um link de e-mail aos amigos. Qualquer um que clicar no link poderá ver o que você está vendo, em tempo real -- milhares de pessoas ao mesmo tempo.

Imaginem que fantástico seria. O mundo poderia se sintonizar, viver, assistir com você a concertos, lançamentos da nave espacial, o avião no Rio Hudson, conferências na faculdade, apresentações de produtos da Apple.

Ou seus parentes poderiam assistir com você a pequenos eventos mais pessoais: casamentos, festas de aniversário, formaturas, primeiros passos.

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O FlipLive deveria chegar no mercado no dia 13 de abril. Um dia depois de a Cisco matar o Flip.

Que beleza!

Eu adorava o Flip. Adorava que seus criadores, ano após ano, resistissem à pressão de enchê-lo de coisas complexas, de recursos. Adoro que nunca, nunca mesmo, tenha falhado. Adorei que esta startup tenha criado alguma coisa que mudou o mundo, e foi premiada com popularidade e vendas.

Infelizmente, também foi premiada com o que ocorre com a aquisição por uma corporação gigante como a Cisco. Sim, o dinheiro foi considerável, mas também o risco que sempre existe quando um empreendimento é vendido para uma companhia maior: de que ela o corte em pedaços e venda as suas partes.

Ou, no caso da Cisco, muito pior: de que ela o corte em pedaços e o considere como morto.

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Eu adorava o Flip. Que ele descanse em paz.

/ Tradução Anna Capovilla

* Texto originalmente publicado em 14/04/2011.

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