Foto do(a) blog

A internet no banco dos réus

Cuidado com onde andas, usar o celular te faz suspeito

Por Jacqueline de Souza Abreu e Mariana Giorgetti Valente

PUBLICIDADE

Por Mariana Giorgetti Valente
Atualização:

Recentemente, comentamos aqui no blog como smartphones se tornaram "baús do tesouro" para autoridades de investigação. O termo não é exagerado: esses aparelhinhos que carregamos diariamente por onde vamos e que só largamos - não sem dar aquela última checada -antes de dormir estão cheios de informações valiosíssimas para solução de crimes: agendas de contatos, notas e bibliotecas de textos, fotos, caixas de e-mails, históricos de mensagens instantâneas, históricos de navegação na Internet e informações de localização. Agora imagina se, por ter usado o celular perto de onde aconteceu um crime, você tivesse que revelar todas essas informações, ainda que sobre você não houvesse suspeitas específicas?

PUBLICIDADE

A pergunta não é hipotética nem vem de teorias conspiratórias. No ano passado, para investigar um rouboa uma empresa de segurança e transporte de valores em Ribeirão Preto, a polícia pediu (judicialmente) que o Google, a Apple e a Microsoft fornecessem dados de todos os usuários que estiveram a até 500m do endereço, em um intervalo de 4 dias. Não era pouca coisa: o que a autoridade policial queria eram os IMEIs (identificadores únicos dos aparelhos celulares), os dados de usuário de contas de e-mail e os registros de acesso a elas, relac?a?o dos locais salvos no Google Maps, o histo?rico de localizac?a?o e deslocamento daquelas pessoas, o histórico de buscas (o que ela procurou!), as senhas armazenadas, e até fotos tiradas, tudo dos últimos 30 dias.

Vejamos: se obrigado a fornecer essas informações, o Google teria que revelar o histórico de localização e de navegação na Internet de TODAS as pessoas que passaram naquele raio de 500m do local do crime durante quatro dias. Isto é, se você deu o azar de passar por ali, a autoridade teria acesso a cada restaurante em que você foi, endereços de casas de amigos, família, trabalho, visitas, e talvez a algum lugar a que você não gostaria muito de revelar por aí que foi; mais que isso, cada pergunta que fez ao Google, cada foto que tirou, constrangedoras ou não. Pense um pouco no que você fez pelo celular nos últimos 30 dias e veja se é pouca informação sobre você.

 

 Foto: Estadão

 

O juiz de primeira instância concordou com somente parte do pedido e autorizou a quebra do sigilo dos dados cadastrais, dos locais salvos no Google Maps e do histórico de localização e deslocamento nos 30 dias anteriores; o Google não se conformou, e entrou no Tribunal de Justiça de São Paulo com um mandado de segurança, mas só conseguiu uma diminuição do escopo da ordem; ainda não se conformando, levou o caso para a instância superior, o Superior Tribunal de Justiça. Só ali o caso começou a mudar de figura.

O magistrado relator do caso, Antonio Saldanha Palheiro, em decisão liminar, determinou que esses dados não deveriam ser fornecidos. Por ora, pelo menos, já que a decisão é provisória e ainda pode ter um destino diferente.O juiz mostrou-se sensível à argumentação de que a entrega desses dados viola a esfera privada de usuários.

Publicidade

O que chama atenção, nesse caso, é que a autoridade de investigação queria dados privados de toda e qualquer pessoa que passou por aquela localidade naquele período e que, na primeira instância, conseguiu a autorização judicial. A ordem era genérica, isto é, não direcionada a pessoas que já eram suspeitas de envolvimento no crime investigado. Isso quer dizer que seriam reveladas e analisadas todas essas informações de um grande número de pessoas inocentes, que talvez sequer soubessem da ocorrência de um crime naquele lugar. Elas estariam sob suspeita e teriam a vida devassada simplesmente por ter passado por ali.

O argumento de muita gente, nessa hora, é que deveria prevalecer o interesse em se apurar o crime, e que, afinal, "quem não deve não teme": quem não tem o que esconder da polícia não tem o que se preocupar. Será que é mesmo assim? Será que nos sentiríamos à vontade e agiríamos na mesma liberdade se soubéssemos que nossa vida privada pode ser devassada com tão pouco critério?

Em um Estado democrático de direito, é necessário que as autoridades não só solucionem crimes, como também respeitem direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Existem muitos fundamentos para que esse equilíbrio seja mantido. Pelo nosso direito penal e processo penal, só se afasta o direito à privacidade quando há suspeita concreta de envolvimento em atividades ilegais. A nossa Lei das Interceptações, por exemplo, só autoriza a quebra de sigilo nas comunicações contra alguém quando há "indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal" (art. 2, I); o Código de Processo Penal só autoriza buscas e apreensões de documentos e computadores de acusados e quando há "fundada suspeita" de que podem elucidar o crime (art. 240, § 2º). Para coibir abusos, o decreto que regulou o Marco Civil da Internet também proibiu expressamente pedidos coletivos "genéricos ou inespecíficos" de dados cadastrais (art. 11, § 3º). A lógica dessas proteções é quanto mais invasivo à privacidade é o pedido, maior tem de ser a suspeita ou a graveza do crime.

Cabe aos investigadores provar quem é culpado, e não às pessoas em geral oferecer informações para se provarem inocentes. Essa é a base do princípio da presunção de inocência, que é um direito humano garantido não só pela Constituição brasileira, mas por diversas convenções e tratados internacionais. Ele não existe solto no mundo: é uma base importante da constituição de relações entre sociedade e Estado. Tratar todos como suspeitos sem justa causa, e assim dar ao Estado acesso tão amplo a informações tão privadas por tão pouco, é dar-lhe um poder desmedido, o que pode ao cabo descambar para diversas medidas autoritárias, e com alvos imprevisíveis.

É ignorar todos esses preceitos permitir informar tanto sobre milhares de pessoas sequer relacionadas com o crime, como se quis no caso de Ribeirão Preto. Fez muito bem o STJ na decisão provisória. Acompanhar a decisão final é de interesse de todos os brasileiros.

Publicidade

 

 

____

Veja a decisão comentada aqui

Decisão

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.