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A internet no banco dos réus

Do Revenge Porn ao #PrimeiroAssedio: gênero, violência e Internet

Por Mariana Giorgetti Valente e Natália Neris

Por Mariana Giorgetti Valente
Atualização:
 Foto: Estadão

Em maio deste ano, o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou um caso nada trivial: uma mulher acusava um sujeito de extorsão, ou seja, de constrangê-la, "mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa". O que o sujeito queria era a quantia de R$ 1.000,00; a grave ameaça, espalhar imagens íntimas que ele tinha dela. O acusado alegou que nunca teve aquelas imagens, e que havia apenas pedido dinheiro emprestado; o juiz entendeu que estava provado que o réu tinha sim as imagens e estava efetivamente chantageando a vítima. A condenação foi mantida em segunda instância: cinco anos de reclusão, mais multa.

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Se o caso choca pela sordidez, fica pior saber que não para por aí. Só no Tribunal de Justiça de São Paulo há uma série de outros semelhantes.

No InternetLab estamos desde janeiro buscando entender como se dão os processos de violência baseada em gênero na Internet (clique aqui para ler mais sobre o projeto). Queremos saber que respostas o direito dá ao problema da exposição de imagens íntimas sem autorização, e que outras soluções seriam possíveis e adequadas. Analisamos decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo sobre o assunto para entender como a Justiça olha para esses casos.

O resultado tem sido, para nós, surpreendente. Esperávamos - talvez mesmo por ignorância - encontrar uma série de casos de fotografias e vídeos espalhados sem autorização, como aqueles que a mídia vem reportando e que os blogs feministas vêm denunciando, sob a expressão revenge porn ou pornografia de vingança. Há de fato alguns deles. Mas o que nos espantou foi a quantidade amplamente maior de casos em que a divulgação das imagens não chegou a ocorrer: a violência consistiu em ameaçar a divulgação delas, ou pedir algo em troca para não as divulgar.

Num outro caso, esse um processo julgado no ano passado, a mulher acusava seu ex-marido de utilizar a posse de imagens íntimas suas para exercer violência psicológica e exigir dela ficar com o filho em comum por mais dias que o combinado. A degravação de uma ligação serviu como prova: "Faça alguma coisa contra mim, alguma coisa... pense bem. Vou esperar mais uma semana. Ele [o filho do casal] vai ficar comigo até dia nove. Pense bem se você vai fazer alguma coisa. Tem um monte de fotos suas. (...) eu tô esperando a hora certa pra usar. (...) Tá prontinha no email já pra mandar pro monte de gente... o jeito que você é piranha." O juiz entendeu que a violência estava provada, e condenou o sujeito a indenizá-la.

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Também em 2014 o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou um Habeas Corpus de um sujeito que foi preso em flagrante pelo crime de estupro. Ele teria ameaçado a ex-namorada, por meio de um perfil falso no Facebook, de divulgar suas imagens íntimas, caso ela não mantivesse relações sexuais com ele. Depois da primeira vez que a estuprou, voltou a enviar mensagens ameaçadoras, dessa vez afirmando que, caso ela não se encontrasse com ele no prazo de doze horas, as imagens seriam espalhadas. Dessa vez, a vítima procurou a polícia, que a acompanhou e, quando ele tentou novamente estuprá-la, prendeu-o em flagrante. Veja que, para isso, ela precisou passar por "[entregar] aos policiais diversas mensagens ameac?adoras [do réu], passando-se por "Fernando Carlos" e contendo imagens da vi?tima despida e em posic?o?es sexuais".

Poderíamos seguir em frente, mas já fizemos nosso ponto: procurando entender o revenge porn e o que é, de um ponto de vista jurídico, utilizar a Internet para fins de violência de gênero, encontramos toda uma teia de violências que escapa à superfície. Percebemos uma vez mais que a violência escapa a definições fáceis, não está dentro ou fora da Internet, e não se permite constranger por um conceito aparentemente pronto como o de revenge porn.

O interessante, e de uma forma dolorida, é que foi exatamente essa a percepção geral que brotou da mobilização, nas duas últimas semanas, em torno da campanha #PrimeiroAssedio. As dezenas de milhares de relatos de assédio compartilhados por mulheres nas redes sociais tiveram como resultado mostrar com transparência cristalina como o problema do assédio é mais generalizado do que poderia parecer à primeira vista. O tabu e o silenciamento que envolvem as questões de sexualidade e papéis de gênero empurram para longe uma compreensão mais ampla dessas violências.

Que irônico que a Internet e as tecnologias digitais estejam sendo usadas para opressão, mas também sejam necessárias para desconhecidas se unirem e trazerem à ordem do dia a fina malha do machismo. As milhares de mulheres relatando suas experiências de assédio foram capazes de construir uma certa compreensão da violência generalizada, banalizada e naturalizada dos cotidianos, evidenciando que estamos tratando de estruturas sociais e culturais, e não de experiências particulares. Que poder isso tem! E que importância tem nos apropriarmos das tecnologias da informação e da comunicação, para escrever o código da nossa própria emancipação.

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Para ler mais sobre casos e as relações entre gênero e Internet, da violência à emancipação, veja também os projetos Gender IT e Take Back the Tech.

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