PUBLICIDADE

Foto do(a) blog

A internet no banco dos réus

Mãos ao alto! (e desbloqueie o celular!)

Por Francisco Brito Cruz e Jacqueline Abreu*

Por Francisco Brito Cruz
Atualização:

O que seu celular diz sobre você? Mensagens, listas de contatos, imagens, pesquisas na web: o que é possível saber sobre alguém quando acessamos seu dispositivo? Neste blog, já vimos como tais aparelhos são muitas vezes vistos como verdadeiros "baús do tesouro" por autoridades de investigação. Nossas vidas estão cada vez mais contidas em tais dispositivos: o aumento da quantidade e o detalhamento das informações ali armazenadas torna cada vez mais possível conhecer uma série de particularidades e minúcias sobre o dono do celular.

PUBLICIDADE

Em abordagens policiais isso fica evidente: o que tem potencial de revelar mais? Vasculhar o celular ou os bolsos do suspeito? A lei autoriza que a autoridade reviste indivíduos se tiver uma "fundada suspeita" de que eles estejam carregando armas ou vestígios de algum crime. Em uma ocasião como essa, os policiais podem também acessar os celulares das pessoas abordadas e vasculhar o que neles está armazenado? Como destacado no relatório Vigilância sobre as comunicações no Brasil 2017, do InternetLab, há muita controvérsia.

No início deste ano, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) teve de lidar justamente com essa questão: podem ser utilizadas, em processos criminais, as informações obtidas pela quebra de sigilo de celulares sem ordem judicial - ou seja, nessa "espiada" sem autorização específica e prévia de um juiz? O caso envolvia a "devassa" de celulares durante uma "batida" policial, seguida de prisão em flagrante. Os acusados alegaram que o uso de tais provas contrariam seus direitos constitucionais à proteção da intimidade e ao sigilo das comunicações. A tese é a mesma que foi aplicada em abril de 2016 pelo Superior Tribunal de Justiça: é ilícita a devassa de dados e conversas obtidas pela polícia em celular apreendido em flagrante, sem prévia ordem judicial. Vasculhar celulares produziria "provas invasivas, altamente tecnológicas, que permitem alcançar conhecimentos e resultados inatingíveis pelos sentidos e pelas técnicas tradicionais".

No entanto, o desembargador relator Jaime Ferreira Menino não se convenceu. Argumentando que as circunstâncias do caso julgado pelo STJ eram diferentes e que a decisão da corte superior não é vinculante e ainda depende de recurso final ao Supremo Tribunal Federal (STF), o magistrado entendeu que a autoridade policial poderia sim ter adotado a prática, embasando a decisão na ideia de que a lei conferiria à polícia atribuições de repressão e prevenção de crimes que abarcariam a possibilidade de checagem do aparelho. Tais competências afastariam inclusive a aplicação do Marco Civil da Internet, no seu trecho que garante a inviolabilidade e sigilo comunicações privadas armazenadas. Em sua decisão, explicou que tais proteções se aplicam apenas quando "indivíduos estão conectados", isto é, quando estão navegando na internet. Não bastaria, tampouco, que o dispositivo estivesse conectado.

O desembargador também adotou e citou uma antiga interpretação da Constituição que até hoje é aplicada pelo Supremo. Segundo essa linha, dados armazenados em dispositivos não são protegidos pelo direito ao sigilo das comunicações: tal proteção apenas se aplicaria a casos de interceptação de comunicações em tempo real.

Publicidade

Cada um desses argumentos é discutível. Como já destacamos diversas vezes, essa linha de interpretação da Constituição está em descompasso com a tecnologia moderna, em que celulares são praticamente a extensão digital de nossas vidas. Torna-se necessário repensar tais níveis de proteção, pois tudo o que está salvo em nossos celulares (o que pode incluir anos de e-mails, histórico de ligações e deslocamentos, mensagens - até as mais embaraçosas do Tinder) pode, hoje, dizer muito mais sobre nós do que o conteúdo de uma ligação que realizamos. Ciente disso, inclusive, o STJ, sua recente decisão, foi bem claro ao declarar ilegal a devassa de celulares sempre que não haja autorização judicial.

A determinação de que o Marco Civil da Internet não deve ser aplicado por conta da ideia de que um indivíduo revistado "não está conectado" também é contestável. A fronteira entre estarmos ou não conectados torna-se cada vez mais tênue, na medida em que nossos celulares estão persistentemente conectados. Com o celular no bolso não estamos mais online?

Por que discutir tais interpretações é importante? Quem não deve não teme?

O porte de um celular nos dias de hoje é natural para a grande maioria dos indivíduos adultos e, por si, não levanta nenhuma "suspeita" de prática de crime. Como em um Estado Democrático de Direito o afastamento da privacidade só pode ocorrer justificadamente, é fundamental que haja um crivo judicial que avalie a pertinência de "devassas" de celulares. Quando se estabelecem balizas para a atuação dos órgãos de investigação, cresce a legitimidade de sua atividade. Abusos devem ser coibidos com regras e procedimentos que sejam sensíveis às circunstâncias do caso concreto e ao nível de invasão que esta ou aquela prática enseja.

Além disso, a falta de crivo judicial tende a agravar a condição daqueles que já estão em situação vulnerável. Abordagens policiais não ocorrem uniformemente por bairro, por classe social ou por raça, o que significa que abrir espaços para abusos pode ter efeitos potencializados em determinadas populações. Na semana passada, o novo comandante da ROTA - a tropa de elite da polícia militar de São Paulo - afirmou que policiais que trabalham no Jardins devem atuar de forma diferente daqueles que trabalham na periferia: "[O policial] usa a mesma técnica, ele vai trabalhar com a mesma doutrina, mas a forma de se abordar e de se falar com a pessoa é diferente". Ao dar carta branca para que a polícia vasculhe celulares em suas batidas, interpretações como a do TJSP podem ter como consequência uma maior exposição da vida privada daqueles que se encaixam em determinados perfis. Isso já parece ser uma realidade: recente reportagem da revista Vaidapé entrevistou jovens da periferia e sinalizou que a devassa nos celulares pode ter se transformado em prática comum em abordagens policiais nesses bairros.

Publicidade

Essa não é uma medida, entretanto, que deva ser "naturalizada". Nossas proteções constitucionais devem acompanhar os avanços tecnológicos. Se dispositivos celulares passaram a "conter" boa parte de nossas vidas, pensar nas regras adequadas para acessá-los tornou-se um tarefa de primeira necessidade.

 

Links:

Link para a decisão do TJSP comentada no texto:

http://www.internetlab.org.br/wp-content/uploads/2017/08/010.pdf

Link para a decisão do STJ comentada no texto:

Publicidade

http://www.internetlab.org.br/wp-content/uploads/2017/08/stj-acesso-a-dados-armazenados.pdf

*Coordenadora da área de Privacidade e Vigilância do InternetLab

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.