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A internet no banco dos réus

O WhatsApp é meu, mas mensagens estão sujeitas à lei (e o Facebook com isso?)

por Dennys Antonialli, Francisco Brito Cruz e Mariana Giorgetti Valente

Por Mariana Giorgetti Valente
Atualização:

O Tribunal de Justiça de São Paulo publicou, na semana passada, uma decisão que obriga o Facebook a fornecer o conteúdo de comunicações de dois grupos do aplicativo WhatsApp, e a revelar dados sobre a identidade de membros desses grupos (os IPs) - confirmando a decisão de primeira instância.

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De acordo com as matérias que foram produzidas sobre o assunto, os grupos "Atlética Chorume" e "Lixo Mackenzista" estavam circulando montagens de uma jovem estudante de engenharia do Mackenzie, em São Paulo, em posições pornográficas, associando-as também ao seu número de telefone.

A vítima quer responsabilizar os autores das mensagens pela violação de sua honra. Para isso, precisa conseguir identificá-los. O Marco Civil da Internet tratou expressamente dessa possibilidade em seu artigo 22, ao determinar que registros de acesso a aplicações (necessários para a identificação) podem ser requeridos ao juiz competente, desde que haja indícios de ilícito e necessidade para fins de investigação. Ou seja, o Judiciário pode requerer a identificação dos IPs utilizados pelos usuários. O conteúdo das comunicações privadas é protegido, mas também pode ser revelado mediante ordem judicial, nos termos do parágrafo segundo do artigo 10.

 Foto: Estadão

A primeira questão enfrentada foi determinar quem deve responder por esses pedidos. Por uma razão estratégica, a demanda foi direcionada ao Facebook, e não ao WhatsApp. Isso porque, enquanto o Facebook tem sede no Brasil, o WhatsApp não, o que dificultaria o processo. É verdade que uma empresa sem representação no Brasil também pode ser processada - o próprio Marco Civil determina a aplicabilidade da legislação brasileira se o serviço for oferecido ao público brasileiro - mas fazê-lo é certamente um procedimento mais complexo e demorado, e os resultados são menos previsíveis.

Diante disso, lembrando que, em fevereiro deste ano, o Facebook comprou o WhatsApp, a autora da ação argumentou pela obrigação do Facebook de responder pelas atividades do aplicativo no Brasil. O Facebook se opôs à tese, alegando que o processo de compra não foi concluído, pois ainda depende da aprovação do órgão antitruste da Comissão Européia. O argumento não sensibilizou o magistrado, que entendeu ter sido "notória" a aquisição, ressaltando, ainda, que o WhatsApp é usado por mais de 30 milhões de brasileiros.

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Pensando em celeridade e na proteção da vítima, faz sentido que ela tenha buscado o Facebook. Mas talvez também faça sentido que o Facebook não tenha condições de cumprir o que se pede dele, já que tudo indica que Facebook e WhatsApp ainda estejam atuando como empresas completamente separadas. Exigir a aplicação da lei brasileira a uma empresa de Internet que não esteja sediada no Brasil é, de fato, um desafio. Muitos aplicativos e serviços populares são oferecidos por empresas que estão sediadas lá fora. Todavia, essa dificuldade não deve servir como justificativa para alargar a responsabilidade daquelas que estão sediadas aqui, ignorando eventual separação das pessoas jurídicas e o poder de controle que umas têm sobre as outras.

O segundo ponto é ainda mais espinhoso: quais são os critérios para se determinar, na Internet, se uma conversa é privada ou pública? Pouco se pensa nisso, mas a difamação é crime em ambos os casos, de acordo com o Código Penal. Não há necessidade que a difamação tenha acontecido "publicamente". Ainda assim, os conteúdos das comunicações privadas são protegidos de forma mais rigorosa, com sigilo, pela Constituição Federal e pelo Marco Civil da Internet. Este sigilo tem um efeito direto na forma como as pessoas utilizam estes serviços. Conversas em grupos do WhatsApp podem parecer, aos usuários, mais privadas que posts na Linha do Tempo do Facebook, por exemplo.

O que fica claro com a decisão é que o compartilhamento de conteúdo difamatório pode ser objeto de uma ação judicial de reparação, tendo acontecido em ambiente "privado" ou não. Piadas e memes que possam se revelar ilícitos, pelo seu teor, ainda que enviados de uma pessoa a outra num serviço de messaging, podem, sim, gerar responsabilização. No caso dos grupos de WhatsApp, que podem conter dezenas e até centenas de usuários, a responsabilização pode ser dura, porque também o dano causado pode ser maior. Mas vale lembrar que a regra é o sigilo, no termos dos incisos II e III do artigo 7 do Marco Civil. De acordo com o artigo 22, o juiz deve verificar se há "fundados indícios da ocorrência do ato ilícito" e justificativa da "utilidade" dos registros de acesso requeridos antes de ordenar que sejam fornecidos. Daí se depreende que a avaliação para determinar se o conteúdo das mensagens deve ser disponibilizado também deve ser rigorosa. Em outras palavras, o juiz deve ter fortes razões para crer que houve violação antes de determinar a identificação dos participantes e a disponibilização do conteúdo das mensagens. Caso contrário, o sigilo das comunicações, instituto democrático tão importante, deixaria de ser a regra.

São tempos difíceis para se discutir Internet e liberdade de expressão. Temos visto candidatos às eleições valerem-se da Lei Eleitoral e dos crimes contra a honra para censurar conteúdos políticos de cidadãos, que se utilizam das plataformas de Internet para fazer suas mensagens chegarem ao público - mensagens que eram mais dificilmente espalhadas antes da Internet. A mesma facilidade dá vazão à proliferação de discursos de ódio, como a misoginia. É o caso não só da estudante, que diz ter passado a receber ligações indesejadas de desconhecidos, mas das muitas meninas e mulheres que têm sua intimidade violada e exposta nas redes. O desafio do Judiciário é como proteger um caso sem, com as soluções criadas, obstar a saudável manifestação de opiniões. Não é um problema novo. Mas a Internet certamente o tornou mais complexo.

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