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A internet no banco dos réus

Olha o palavreado!

Por Francisco Brito Cruz e Thiago Dias Oliva

Por Francisco Brito Cruz
Atualização:

Você conhece alguém que já "xingou muito no Twitter"? Não é incomum vermos na Internet lamentações e reclamações sobre situações do cotidiano, por vezes recheadas de palavrões e expressões mais enérgicas. Não é preciso muito: aquele descaso no atendimento no banco ou na padaria; o brinquedo comprado que chegou com um grande defeito de fabricação... Passar por tais situações desagradáveis pode dar vontade de denunciar enfaticamente práticas lesivas - e aproveitar para ventilar um pouco a sua indignação. Deixar explícita a irritação pode fazer com que outros consumidores tomem cautelas para não sofrerem do mesmo problema. Boa ideia? E se, mesmo depois desse trabalho todo, esse desabafo fosse removido da internet a mando do Judiciário?

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Xingar muito é comum no notório Canal do Otáriono Youtube. O canal leva a reclamação e a denúncia ao extremo com vídeos e mais vídeos de críticas a práticas políticas e empresariais. Um dos posts, porém, acabou incomodando a ponto de ter sido alvo de um processo judicial. O Banco Bradesco - alvo da vez das reclamações - queria a remoção do vídeo.

O caso começou em 2012. Na época o Canal do Otário publicou um vídeo em que criticava duramente um dos produtos do banco, "Hiperfundo Bradesco", dizendo que se tratava de investimento "para enganar otário" e recomendando a busca por outras opções. Para proteger sua honra, o Bradesco acionou a Justiça para que o Google, controlador da plataforma de vídeos, removesse o conteúdo e inviabilizasse seu acesso por meio de seu buscador.

Em primeira instância, o Google foi obrigado a excluir o vídeo. Esta decisão, entretanto, não agradou nenhuma das partes - ambas recorreram. De um lado o Bradesco julgava a sentença insuficiente, entendendo que ela deveria ter condenado o buscador a impossibilitar o acesso ao vídeo também por outros meios. Do outro o Google estava insatisfeito com a obrigação de remover o vídeo, alegando que o conteúdo não era excessivamente ofensivo e, mesmo na hipótese de que fosse, caberia ao banco pleitear indenização em face do autor do vídeo, e não insurgir-se contra a plataforma em que ele foi veiculado.

Os recursos foram a julgamento no início deste ano. Em decisão favorável ao Google, a 7ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo considerou que o conteúdo do vídeo não atingiu a honra objetiva do banco, encontrando-se dentro dos limites do "legítimo exercício do direito à livre manifestação de pensamento": o consumidor tem direito de expor sua insatisfação. Além disso, ponderou que "ninguém está mais sujeito à crítica do que uma empresa do porte da autora, um dos maiores bancos privados de nosso país".

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O caso traz uma discussão importante por ter considerado "socialmente aceitável" um discurso repleto de xingamentos, o que muitos argumentam ser um uso abusivo da liberdade de expressão. Ao permitir a veiculação das reclamações do Otário, o Tribunal alargou os limites desse direito, entendendo que ele também abarca o uso de uma linguagem mais incisiva e, inclusive, menos "educada" para transmitir uma ideia. A mensagem é clara: é possível pesar nas tintas se isso fizer parte da indignação. O uso de palavrões e a comparação do investimento a um "assalto a mão armada" podem ser artifícios legítimos utilizados pelo autor do vídeo para transmitir, de forma mais contundente, a sua mensagem de irritação com o produto do banco. Como seria uma sociedade em que reclamações desse tipo somente pudessem ser articuladas de forma polida?

Isso se aprofunda se considerada a assimetria existente nas relações de consumo e seu impacto no exercício da liberdade de expressão por parte dos consumidores em geral. Se essa relação implica, usualmente, grande disparidade de forças entre o fornecedor de produtos ou serviços (muitas vezes uma empresa influente, de grande porte, e com acesso a recursos) e o cliente, pode ser mais do que justo assegurar ao consumidor, o direito de vociferar crítica mordaz ao serviços prestados se ela estiver minimamente pautada na realidade.

O fato que a liberdade de expressão seja direito garantido a todos pela Constituição não faz com que sua distribuição na sociedade seja equânime. No caso que estamos discutindo fica fácil entender o significado dessa desigualdade: o banco pode fazer uso - e muito provavelmente o faz - de publicidade em diversos espaços para divulgar seus produtos e serviços e construir uma imagem positiva deles, enquanto que o alcance da voz de um consumidor insatisfeito é infinitamente menor.

Olhar a situação a partir dessa perspectiva da desigualdade de quem se expressa nos ajuda a perceber a importância de proteger a crítica, ainda que virulenta: além de representar, na prática, ameaça mínima às atividades de uma empresa de grande porte, o vídeo poderia ter um valor enquanto fonte de informação a eventuais interessados em investir no produto oferecido pelo banco. Para não manchar a sua imagem, o banco acabaria por silenciar um consumidor e intervir no acesso à informação por parte de potenciais interessados no conteúdo do vídeo. Perder a linha também pode ser liberdade de expressão.

 

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Há um mês, o InternetLab lançou o Dissenso.org, plataforma de referência em temas de liberdade de expressão na Internet. Este e muitos outros casos estão categorizados na Casoteca do Dissenso.org, uma de suas seções. Acesse!

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