Foto do(a) blog

A internet no banco dos réus

Na Internet, ser recatada vale ouro

Por Mariana Giorgetti Valente e Natália Neris

PUBLICIDADE

Por Mariana Giorgetti Valente
Atualização:

Se você tem mais de 25 anos, vai se lembrar de quando um vídeo contendo cenas íntimas na praia entre a modelo brasileira Daniella Cicarelli e seu então namorado, Renato Alfieiro Malzoni Filho, viralizou. Era setembro de 2006. Em 2007, a Justiça determinou o bloqueio do YouTube no país todo, entendendo que o YouTube não estava sendo diligente em eliminar as muitas versões do vídeo que continuavam aparecendo (o bloqueio durou quatro dias - ler sobre o caso no site Bloqueios.info).

PUBLICIDADE

O caso veio tramitando entre embargos, agravos, caminhos tortuosos. Naquela época, a Justiça entendeu que o YouTube deveria pagar multa de R$ 250 mil reais por dia de descumprimento da obrigação de não deixar os vídeos no ar. No mês passado, o STJ proferiu mais uma decisão sobre o caso, afirmando que cada um dos atingidos, Daniela e Renato, receberia um total de R$ 250 mil. Mantida aquela decisão, hoje a multa devida pelo Google ultrapassaria os R$ 160 milhões, o que não pareceu razoável. Apesar da diminuição da multa, manteve-se o entendimento de que houve dano à imagem e à intimidade do casal, independente de os atos terem sido praticados em espaço público. Essa discussão tinha dado muito pano pra manga quando os vídeos viralizaram.

Passam-se dez anos. No último mês, um juiz de São Paulo decidiu também sobre valores, em um outro caso envolvendo celebridades, gênero e sexualidade. A atriz e escritora Fernanda Young pediu indenização por danos materiais e morais, por violação de seu direito de imagem. É que, em março de 2015, ela postou uma foto no Instagram e um usuário comentou: "Melhor baixar fotos gratuitamente na playboy e admirá-la como na personagem da revista: uma vadia lésbica".

Nesse caso, o juiz entendeu que não havia dano material, e que o dano moral deveria ser fixado em R$ 5 mil. O que chama atenção, na decisão, é que ele fundamenta ter arbitrado um valor "baixo" com base na "reputação" da vítima:

"o valor leva ainda em conta o fato da autora ter artisticamente posado nua, de modo que sua reputação é mais elástica, inclusive porque se sujeitou a publicar fotografia fazendo sinal obsceno, publicou fotografia exibindo seios e não limitou a defender-se, afirmando que terceiros seriam "burros"," e prossegue:   "ora, uma mulher com tantos predicados como a autora afirma possuir deveria demonstrar, porque formadora de opinião, uma pouco mais de respeito. Há valores morais que devem governar a sociedade e que, no mais das vezes, nos dias que correm, são ignorados em prestígio a uma pretensa relatividade aplicada às ciências sociais, geradora do caos atual."

Publicidade

Em 2016, publicamos um livro sobre decisões judiciais a respeito de disseminação não consentida de imagens íntimas (NCII), prática também conhecida como revenge porn ou pornografia de vingança. Nossa pesquisa nos mostrou que, no caso de julgamentos penais, em que se está lidando com um crime com uma pena mínima e uma pena máxima, considerações sobre a reputação da vítima aparecem pouco. Já nos casos sobre indenizações, a lei não estabelece quaisquer parâmetros de valores. É aí que surge toda uma sorte de considerações pessoais, e é aí que o sexismo e outras discriminações mais aparecem.

Vimos discussões, por exemplo, sobre se uma vítima não mereceria menos indenização, porque afinal teria "contribuído com a disseminação não consentida", quando enviou imagens suas para alguém específico (argumentos trazidos por plataformas de Internet, buscando não ser responsabilizadas). Vimos também magistrados entendendo que o fato de uma mulher ser advogada, ou ter outra profissão de prestígio, seria um fator relevante para aumentar valor da indenização - a contrario sensu, mulheres com menos privilégios seriam merecedoras de menor indenização. Comparando todos os valores dados em indenizações e multas, aliás, o caso da modelo Daniela Cicarelli despontava como bastante desviante, dado que os demais valores variavam entre R$ 2 mil e R$ 15 mil.

Como mensurar o dano sofrido por quem tem sua imagem exposta na Internet em razão de questões de gênero e sexualidade? O que deve o juiz levar em consideração?

Mensurar em dinheiro um dano moral sofrido por uma pessoa é sempre complexo, e isso já é muito debatido no direito. Mas, em casos envolvendo sexualidade, adotar como solução a chave da honra e da reputação é um grande problema. Isso vem permitindo que um juiz discuta a autodeterminação que quem quer que seja tem sobre seu corpo - o que é tanto mais problemático quando se trata de mulheres e de minorias sexuais, tão sujeitas em nosso contexto à revitimização com base em argumentos que as culpabilizam pelo exercício de sua sexualidade. Problemático, enfim, porque os critérios para mensurar o dano moral nesses casos, infelizmente, podem ser "elásticos", graças à persistência do machismo em nossas relações sociais.

Decisão do STJ sobre o caso Cicarelli - Aqui

Publicidade

Decisão de primeira instância sobre o caso Fernanda Young - Aqui

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.