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A internet no banco dos réus

Smartphones: baús do tesouro da Lava Jato

Por Dennys Antonialli, Francisco Brito Cruz e Mariana Giorgetti Valente

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Por Mariana Giorgetti Valente
Atualização:

As práticas de investigação criminal da Operação Lava Jato têm levantado debates jurídicos acirrados: em delações premiadas, prisões preventivas, cooperação internacional, o Judiciário vem dando acolhida a novas interpretações propostas pela Polícia Federal e pelo Ministério Público (as chamadas "forças-tarefa") na repressão a crimes de colarinho branco. Junto com os ganhos da Operação, surgem questionamentos a respeito das práticas adotadas, por vezes denunciadas como interpretações muito "extensivas" da legislação, a violar os direitos de defesa dos acusados. Parte da comunidade jurídica preocupa-se, especialmente, com a consolidação dessas interpretações por tribunais superiores - o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), de forma a cristalizá-las.

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Nessas operações, as "informações digitais" assumiram um papel central. Afinal, a vida conectada deixa muitos rastros: você já parou para pensar em quantas informações estão armazenadas só nos telefones celulares? São agendas de contatos, arquivos de textos, fotografias tiradas diariamente, anotações, caixas de e-mails, históricos de mensagens instantâneas, históricos de navegação na Internet, informações de GPS sobre cada lugar que visitamos e que caminho fizemos. Resumindo: nossos smartphones se tornaram verdadeiros "baús do tesouro" para investigadores.

Se é evidente que essa grande disponibilidade de informações pode facilitar uma investigação judicial, também cresce a possibilidade de acesso pelas autoridades a muito mais informações do que seria necessário e razoável, o que levanta preocupações sobre privacidade, intimidade e outros direitos, como liberdade de expressão e de associação. É razoável que uma equipe de investigação tenha, por exemplo, acesso à sua caixa de e-mails inteira, para descobrir algo sobre uma comunicação específica entre você e um potencial infrator? O que está em jogo, no fim das contas, é uma questão democrática importantíssima: quais os limites que devem ser impostos ao Estado em relação aos direitos e liberdades individuais das pessoas, ainda que o combate à corrupção e a outros crimes seja também um objetivo a ser alcançado?

Ilustração: Juliana Pacetta Ruiz. Foto: Estadão

O próprio início da Lava Jato esteve marcado por controvérsias desse tipo: em 2014, o acesso a mensagens trocadas por um dos réus, Alberto Youssef, foi o elemento-chave para a força-tarefa recolher elementos sobre o esquema de propinas operado - e depois delatado - por ele. A forma como a operação obteve acesso às mensagens foi questionada pela defesa: ela teria infringido os procedimentos formais existentes de cooperação internacional ao pedir diretamente para a matriz estrangeira da empresa fabricante dos telefones (RiM, que fabricara os Blackberries dos investigados) o conteúdo das conversas.

O STJ acaba de decidir, como tem feito em muitos outros casos, sobre uma questão controversa como essa. Desta vez, a defesa de um dos réus da operação alegou que o juiz Sérgio Moro não poderia ter aceito como prova conversas armazenadas em um smartphone apreendido em cumprimento a uma de suas ordens de busca e apreensão. Ou seja, o simples fato de se ter apreendido o aparelho mediante ordem judicial (de busca e apreensão) seria suficiente para garantir o acesso a tudo que existe dentro dele (incluindo as conversas), sem necessidade de uma outra ordem judicial, específica para isso.

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Para o STJ, Moro agiu corretamente. De acordo com a decisão, como não se trata de uma interceptação de comunicações, que exigiria o cumprimento de requisitos mais estritos de autorização judicial (como determina a Lei n. 9.296/1996), não haveria necessidade de obtenção de nova ordem específica. A decisão vai na linha do que o STF também já decidiu em relação ao acesso a emails armazenados em computadores apreendidos pela polícia, conforme apontamos no relatório do InternetLab sobre vigilância das comunicações no Brasil (link no fim do texto).

É verdade que, em sua ordem de busca e apreensão, Moro conferiu plenos poderes de acesso à polícia: "(...) poderão as autoridades acessar dados armazenados em eventuais computadores, arquivos eletrônicos de qualquer natureza, inclusive smartphones, que forem encontrados (...)". Contudo, essa autorização genérica e irrestrita a quaisquer informações armazenadas precisa ser colocada em perspectiva.

A argumentação do STJ parece estar calcada na seguinte premissa: a legislação confere uma proteção maior ao fluxo das comunicações do que às informações armazenadas. Isso significa que é muito mais difícil conseguir autorização para interceptar uma ligação ou um endereço de email do que para ter acesso ao que está guardado em um smartphone.

No passado, isso parecia fazer sentido: os celulares eram enormes "tijolos" que apenas faziam e recebiam chamadas. Grampear uma ligação era uma das únicas maneiras de se ter acesso a uma série de evidências e, portanto, umas das maiores violações à privacidade que se poderia cometer. Foi nesse contexto que a Lei de Interceptações foi pensada, em 1996. Hoje, essa realidade se inverteu. A legislação, no entanto, não acompanhou, de forma que esses tesouros de dados ficaram sem proteção.

Vejam como estamos lidando com um descompasso: essa interpretação sobre os dados armazenados, que é compartilhada pelo juiz Sérgio Moro, pelo STJ e pelo STF, vem se baseando, por exemplo, em um texto escrito em 1992 por um importante jurista, o prof. Tercio Sampaio Ferraz Jr. Para ele, eventuais quebras de sigilo "de dados" (o exemplo dado no texto é o do acesso a extratos bancários) não violariam a Constituição, por não serem "grampos" (que pela Constituição são permitidos apenas em casos excepcionais). Quase vinte e cinco anos depois, vale a pena questionar se não estaríamos utilizando parâmetros jurídicos arcaicos para lidar com novíssimas formas de comunicações. O que é mais privado: tudo o que está salvo no seu celular, o que pode incluir vinte anos de e-mails, ou o conteúdo de uma ligação que você realiza?

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Ainda que o enquadramento que a decisão oferece esteja correto - o caso em questão não trata de uma interceptação de comunicações propriamente -, com nossos celulares sendo repositórios de tantas informações, seria essencial o estabelecimento de limites em relação a quanto e quando se pode ter acesso ao que está guardado dentro deles. Nos Estados Unidos, como já comentamos aqui, essa questão já foi enfrentada pela Suprema Corte, que, por unanimidade, decidiu ser necessária uma ordem judicial específica para o acesso a dados armazenados em um aparelho celular, mesmo que ele já esteja em poder da polícia depois de uma busca e apreensão (caso Riley v. California).

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Além do sigilo das comunicações (art. 5, XII), a Constituição Federal também determina a proteção do direito à privacidade (art. 5, X), o que deve ser levado em consideração em decisões como essa. Em vez de ser vista como escudo para potenciais criminosos, a privacidade também precisa ser encarada como um dos pilares do estado democrático de direito, sem a qual ficam ameaçados o livre desenvolvimento da personalidade e o exercício das liberdades civis.

Se a Lava Jato vem produzindo imensos impactos na investigação criminal e em uma série de processos sociais, também quanto aos direitos digitais ela precisa ser acompanhada de perto e submetida à crítica. No afã da convulsão política pela qual passa o país, solidificam-se entendimentos e práticas que podem comprometer direitos de todos nós.

 

 

Link para a decisão do STJ:

http://www.internetlab.org.br/wp-content/uploads/2016/11/lavajato.pdf

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Relatório de Vigilância sobre as Comunicações publicado pelo InternetLab em parceria com a EFF:

http://www.internetlab.org.br/wp-content/uploads/2016/01/ILAB_Vigilancia_Entrega_v2-1.pdf

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