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A internet no banco dos réus

De quem é a conta do streaming?

Por Dennys Antonialli, Francisco Brito Cruz e Mariana Valente

Por Francisco Brito Cruz
Atualização:

Como você faz para ouvir música pela Internet? Ao que parece, serviços que usam a tecnologia de streaming "chegaram para ficar". Desde que ficou muito mais fácil baixar um álbum pela Internet do que comprá-lo em uma loja passamos por vários momentos, acompanhados por um aumento na quantidade de pessoas conectadas e da qualidade dessas conexões. Em 2015, 46% de todos os ganhos da indústria da música (gravadoras e selos) vieram de arrecadação em plataformas digitais como o Spotify, o Deezer e o Youtube. A ascensão de tais modelos coloca uma importante pergunta: como devem ser cobrados os direitos dos autores e intérpretes das músicas que ouvimos pela Internet?

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A questão é essencial para atores muito diferentes da "cadeia da música": dos Spotifys às gravadoras, dos autores de músicas antigas às novas bandas que acabam de lançar seus primeiros EPs - todo mundo está interessado em saber como será remunerado a partir desse novo arranjo. E, evidente, diferentes arranjos podem ter diferentes consequências para o preço final que o consumidor vai pagar para escutar música.

No Brasil, a questão musical passa pelo Ecad, órgão que reúne associações de detentores de direitos autorais e conexos (que são os direitos dos intérpretes por exemplo, mas também do produtor fonográfico ou gravadora). Agora sob supervisão do Estado, o Ecad - representante desse sistema de "gestão coletiva" - tem a competência de recolher os direitos autorais devidos em situações de execução pública de músicas. No mundo analógico a história fica da seguinte forma: quando a música toca no rádio (ou televisão, festas, shows etc), o executante (nesse caso a rádio) deve pagar os direitos ao Ecad; quando se ouve música em casa depois de comprar o CD do artista, não. Nesse caso, foram pagos direitos diretamente às empresas que representam os autores, no ato da compra, sem passar pelo Ecad.

E na Internet, o que seria "execução pública"? A Lei de Direitos Autorais brasileira, feita em 1998, não traz uma resposta fácil. Ela estabelece que "[c]onsidera-se execução pública a utilização de composições musicais ou lítero-musicais, mediante a participação de artistas, remunerados ou não, ou a utilização de fonogramas e obras audiovisuais, em locais de freqüência coletiva". Mais adiante, diz: "Consideram-se locais de freqüência coletiva os teatros, cinemas, salões de baile ou concertos, boates, bares, clubes ou associações de qualquer natureza, lojas, estabelecimentos comerciais e industriais, estádios, circos, feiras, restaurantes, hotéis, motéis, clínicas, hospitais, órgãos públicos da administração direta ou indireta, fundacionais e estatais, meios de transporte de passageiros terrestre, marítimo, fluvial ou aéreo, ou onde quer que se representem, executem ou transmitam obras literárias, artísticas ou científicas".

 Foto: Estadão

O Judiciário ainda não selou uma interpretação unânime da lei no caso das utilizações na Internet. Nesta semana, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro analisou o recurso do Ecad em um processo movido em face do Terra (dono de um serviço de streaming chamado Sonora). De um lado, o Ecad argumentava que poderia cobrar do Terra valores relativos a direitos autorais porque, em sua interpretação, a Internet seria um espaço de frequência coletiva; do outro, o Terra argumentou que a execução não é pública, mas individualizada porque parte da escolha de cada usuário e de seu uso do serviço de streaming. No julgamento, o Tribunal deu razão ao Terra, afirmando que"o sistema 'streaming' adotado pela parte ré não configura uma execução pública, uma vez selecionado pelo usuário o conteúdo que deseja ouvir, será iniciada uma transmissão individual e a execução da obra musical será restrita apenas a localidade daquele usuário". De fato, o TJ do Rio de Janeiro e alguns outros no país vêm decidindo dessa forma.

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Enquanto isso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), órgão superior e que uniformiza a interpretação da lei, está também no meio do julgamento de um caso de cobrança de direitos autorais na Internet - em jogo, serviços digitais distintos como rádios online que fazem "simulcasting", ou seja, reproduzem na Internet uma programação AM ou FM, rádios que existem apenas online, e serviços nos quais o usuário pode escolher o que quer escutar a cada momento, como o YouTube ou o Spotify. Apesar de o caso no STJ dizer respeito a uma rádio praticando o simulcasting (a falecida Rádio Oi FM), é possível que o órgão acabe decidindo sobre os serviços digitais de streaming em geral. Nessa ação, dois ministros já deram parecer entendendo que o Ecad tem a prerrogativa de cobrar em todas as modalidades- o caso está parado desde que um terceiro pediu vistas, em junho.

No início de 2016, o Governo Federal tentou, por intermédio do Ministério da Cultura, criar regras que resolvessem a controvérsia. O Ministério, que supervisiona o Ecad desde 2013, abriu um processo de debate público sobre uma proposta de "instrução normativa" que, em suma, tornava a cobrança da entidade possível, mas regulada conforme uma série de regras. Feita em um momento de conturbada crise política nacional, a consulta pública foi acompanhada pelo InternetLab, que reportou sua tomada por uma enxurrada de manifestações contrárias ao governo. Salvo alguns poucos debatedores representantes de setores interessados, a esmagadora maioria dos participantes trouxe posicionamentos imprecisos (como de que a cobrança do Ecad seria uma "taxa") ou genericamente contrários à qualquer iniciativa do governo da então presidenta Dilma Rousseff. Pouco antes de ser suspensa, em junho, Rousseff tornou regra essa proposta, mas sua saída arrastou o tema para a indefinição novamente - especialmente porque o órgão responsável pela supervisão do Ecad, e que havia emanado a regulamentação, a Diretoria de Direitos Intelectuais, deixou de existir no novo organograma. O novo ministro da Cultura, Marcelo Calero, ainda não definiu seu posicionamento publicamente.

De uma forma ou de outra, ou seja, via Ecad ou não (isto é, com as plataformas pagando diretamente às empresas que representam detentores de direitos e suas associações ou agregadoras), haveria distribuição de direitos autorais. Em jogo, diferentes taxas de administração e grupos empresariais, bem como uma disputa pela nacionalização e (possível, dada a indefinição) supervisão do recolhimento, que o Ecad representaria. Que impactos isso teria no cidadão que consome música é algo que ainda não foi bem discutido por ninguém.

Confira a íntegra da decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro clicando aqui.

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