E se o juiz fosse uma inteligência artificial?

Um 'juiz eletrônico' poderia ser capaz de analisar imagens como as captadas pelas câmeras de TV e chegar às próprias conclusões se houve falta, pênalti ou impedimento em um lance específico

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Por Bruno Romani
Atualização:
Um juiz eletrônico também poderia tornar o futebol mais econômico Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Hoje é domingo e uma coisa é certa: ao final da rodada do Campeonato Brasileiro, vai ter torcedor insatisfeito com um erro do juiz ou o desempenho do VAR (sigla, em inglês, para Vídeo Árbitro Assistente), a ferramenta de vídeo pensada para melhorar o nível da arbitragem do futebol. Mas não precisa sempre ser assim. Mesmo ainda fazendo parte da “categoria de base” da tecnologia, a inteligência artificial (IA) já revoluciona diferentes mercados, da saúde ao Direito, ameaçando acabar com profissões. A próxima, por quê não, pode ser a de quem sopra o apito e levanta a bandeira no esporte mais popular do planeta. 

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“É possível treinar redes neurais, além de usar técnicas de visão computacional, para identificar erros de arbitragem”, explica Marcelo Zuffo, professor da USP e membro do Instituto de Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos (IEEE). Em outras palavras, um juiz eletrônico poderia ser capaz de analisar imagens como as captadas pelas câmeras de TV e chegar às próprias conclusões se um determinado lance teve falta, lateral, impedimento ou valia um cartão amarelo ou vermelho. 

Para ser ajustado, o sistema deveria usar um grande banco de dados, com milhões de imagens de partidas de futebol. A cada tipo de jogada possível de marcação, como um pênalti ou escanteio, a máquina deveria passar por um treinamento diferente. Pode parecer absurdo, mas a tecnologia não é muito diferente de sistemas de reconhecimento facial adotados por empresas de segurança, de plataformas que podem reconhecer um tumor num pulmão a partir de um exame de raio-X ou mesmo o trabalho para tornar carros autônomos. O conceito é simples: aprender uma regra e aplicá-la à exaustão. 

Bandeirinha

Uma das líderes no mercado de geração de imagens para transmissões esportivas, a empresa belga EVS já achou uma maneira de utilizar IA para assinalar impedimentos, em menos de dois segundos. É algo mais eficaz do que acontece no VAR hoje – no Campeonato Brasileiro, algumas decisões chegam a demorar alguns minutos, esfriando o clima da partida. “Hoje, o sistema que marca impedimentos para o VAR exige que as câmeras sejam instaladas e calibradas antes de cada jogo Se uma delas levar uma bolada e se movimentar, não podem ser usadas”, explica Cristiano Barbieri, gerente comercial da EVS no Brasil “Além disso, na cabine do VAR, um humano precisa posicionar as linhas manualmente para tomar decisões.” 

Já a plataforma da EVS, chamada de Xeebra (lê-se “zibra”), é capaz de alinhar linhas virtuais do “tira-teima” com as linhas do campo: se quiser analisar se um jogador estava à frente da linha da bola, o operador só precisa apertar um botão e as riscas virtuais aparecem em menos de dois segundos nos diversos ângulos disponíveis. O sistema já está em prática no Campeonato Espanhol e será testado na Copa do Mundo Sub-17, que acontece em novembro no Brasil. 

O uso da tecnologia como “bandeirinha virtual” não está restrito ao futebol: esportes como tênis e críquete também já incorporaram sistemas de inteligência artificial para determinar, por exemplo, se uma bola foi rebatida dentro ou fora da quadra. Questionado se é possível imaginar que o Xeebra ganhe uma promoção e vire árbitro de campo, Barbieri não descarta a hipótese. “Não é algo que está nos nossos planos, mas acho que um árbitro de vídeo automatizado pode evoluir para um nível que nem conseguimos imaginar”, diz o executivo. 

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Criar um sistema de juiz eletrônico poderia não só ser algo que melhoraria a qualidade do futebol, mas também poderia torná-lo mais econômico. Hoje, uma equipe de arbitragem é numerosa, com cerca de 10 pessoas – quatro no campo (árbitro, os dois bandeiras e o quarto árbitro) e seis na cabine do VAR (árbitro de vídeo e seu reserva, um assistente, um assessor e dois operadores de vídeo). 

O custo médio da estrutura é de R$ 51 mil partida, divididos entre CBF (R$ 31 mil, o que cobre a infraestrutura) e clubes (R$ 20 mil para passagens, hospedagem e pagamento aos profissionais). Um VAR totalmente eletrônico, ainda que não elimine os custos com instalação de câmeras e equipamentos ao início de cada jogo, poderia dispensar boa parte desse gasto – até mesmo para divisões inferiores do futebol. 

No campo

Uma das formas de se imaginar para onde a tecnologia pode caminhar dentro do futebol é observar o desenvolvimento de carros autônomos. Eles precisam analisar imagens em tempo real, prever intenções de outros atores e tomar decisões em situações duvidosas – como um motorista que resolve trocar de faixa sem dar seta. São desafios parecidos com os do juiz robô. Mas desenvolver o aparato tecnológico para o árbitro eletrônico é mais complicado. 

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“Numa arbitragem feita por máquinas, o ideal é que as cenas das partidas sejam capturadas em três dimensões, como fazemos com os carros. É assim que dá para ter certeza de distâncias, velocidades, direção e colisão entre elementos”, explica o professor da USP São Carlos Fernando Osório, especialista em veículos autônomos. “Em imagens como as de TV, em duas dimensões, essas informações são difíceis de extrair, pois a perspectiva da câmera pode enganar. Por outro lado, usar sensores 3D em um jogo não parece viável nos dias atuais.” 

É algo contraproducente: hoje, sensores 3D têm problemas quanto à resolução da imagem e o alcance de captura – estariam distante das imagens 4K e do zoom, por exemplo, obtidos pelas câmeras convencionais. Assim, as informações tridimensionais para treinar a máquina seriam de baixa qualidade, deixando o juiz eletrônico com qualidade digna do futebol de várzea. 

Outra dúvida é o nível de sofisticação que um algoritmo poderia alcançar: especialistas da área acreditam que não seja possível criar uma IA “geral”, capaz de simular toda a complexidade do cérebro humano – incluindo a capacidade de aprender múltiplas tarefas, de fazer tricô a pilotar um avião. Um juiz eletrônico poderia sofrer do mesmo problema. “A inteligência de um juiz humano é bem sofisticada: ele precisa conhecer as regras do jogo, perceber as atitudes em campo e prever impacto da ação que julga”, diz Osório. “É algo que requer uma IA que vai além do sistema usados nos carros, por exemplo”. 

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Ou seja: ao contrário do que os urros das arquibancadas fazem supor, o árbitro não é burro. Pelo contrário: ele tem que lidar com múltiplas tarefas, muitas delas impossíveis de serem interpretadas por uma máquina. O que não significa, no entanto, que um sistema de IA não possa se tornar especialista em tarefas específicas, com eficiência e velocidade superiores às das melhores equipes humanas de arbitragem – como os já citados impedimentos, por exemplo, ou laterais. 

Fla-flu

Para quem já ergueu os braços ao final das partidas, a falta de sofisticação das máquinas é o maior empecilho para a adoção de um juiz eletrônico. “A tecnologia não é perfeita porque não detecta o fator humano”, diz Arnaldo Cezar Coelho, um dos dois brasileiros a já ter apitado uma final de Copa do Mundo. (leia entrevista ao lado). Quem também descarta o “juiz eletrônico” é Leonardo Gaciba, chefe de arbitragem da CBF. “Até que se prove o contrário, acho impossível o VAR com IA. Tem que ter um humano interpretando a regra”, afirma. 

Já os especialistas em IA defendem que a subjetividade da regra é um argumento a favor das máquinas. “Uma IA existe para lidar com elementos e padrões que humanos não conseguem ver”, diz Zuffo. “Se o sistema tiver um índice de acerto maior que o de um humano, mesmo que não seja 100%, sua adoção já vale a pena”, afirma.

Ao que tudo indica, essa questão não será resolvida no mata-mata, mas sim em pontos corridos. Mas uma coisa é certa: ao menos uma categoria concorda com Zuffo: as maltratadas mães dos juízes de futebol. E xingar mãe de máquina, pode? /COLABOROU BRUNO LOUSADA, ESPECIAL PARA O ESTADO

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