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Porque os tribunais terão de salvar a neutralidade da rede nos EUA

Em artigo para o The New York Times, criador do conceito de neutralidade da rede ataca a proposta recente do governo Trump de acabar com a regra nos Estados Unidos

Por Tim Wu
Atualização:
Pai foi confirmado na presidência do órgão responsável por regular o setor de telecomunicações por Trump em janeiro; agora, ele quer mudar as regras que defendem a neutralidade da rede Foto: Washington Post

Em 2005, uma pequena empresa de telefonia com sede na Carolina do Norte chamada Madison River começou a impedir que seus assinantes fizessem chamadas telefônicas usando o aplicativo Vonage. Como o Vonage era concorrente no mercado de chamadas telefônicas, a ação da Madison River era obviamente anticompetitiva. Consumidores se queixaram, e a Comissão Federal de Comunicações (FCC), cujo chairman era Michael Powell, indicado pelo Partido Republicano, prontamente multou a empresa e obrigou-a a parar de bloquear o Vonage.

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Foi nesse momento que as regras da “neutralidade na rede” passaram de mera proposta acadêmica para integrar a ordem jurídica dos Estados Unidos. Foi sob tal base - uma internet aberta, sem bloqueios – que grande parte do ecossistema atual da internet foi constituído.

Na última terça-feira, o presidente da FCC, Ajit Pai, anunciou planos para eliminar até mesmo as proteções mais básicas da neutralidade da rede – incluindo a proibição de bloqueio – substituindo-as por um regime de “transparência” a ser colocado em prática pela Comissão Federal de Comércio(FTC). “Transparência”, é claro, é um eufemismo para “não fazer nada”. 

Empresas como a Madison River, ao que parece, em breve poderão bloquear chamadas na internet, desde que divulguem o bloqueio (presumivelmente naquelas letrinhas minúsculas). Na verdade, uma operadora de banda larga como a AT&T, se quisesse, poderia até mesmo exercer uma censura à internet, parecida com a do governo chinês, bloqueando seus críticos e promovendo seus próprios interesses.

Permitir tal censura é execrável para o espírito fundador da internet (e dos Estados Unidos). E ao ir tão longe, a FCC também pode ter exagerado seu alcance legal. Esse retrocesso na política é tão drástico (se, como esperado, a comissão aprovar a proposta de Pai no próximo mês), e tão fraca é a evidência para sustentar tal mudança, que ela parece destinada a ser derrubada no tribunal.

O problema para Pai é que as agências governamentais não são livres para reverter abruptamente regras que vigoram de longa data, nas quais muitos se basearam sem uma boa razão, tal como uma mudança em circunstâncias objetivas. Uma mera mudança na ideologia da FCC não é suficiente. Como já declarou a Supremo Corte, uma agência federal deve “examinar os dados relevantes e articular uma explicação satisfatória para sua ação”. Dado que as regras da neutralidade da rede têm sido um grande sucesso pela maioria das medidas, a justificativa para extingui-las teria que ser muito forte.

Aviso: não é. Na verdade, a justificativa é muito fraca. Pelo que sabemos até agora, a lógica de Pai para eliminar as regras é que as empresas de cabo e telefone, apesar de anos de lucro saudável, precisam ganhar ainda mais dinheiro do que já ganham – ou seja, as taxas de retorno atuais não produzem os incentivos de investimento adequados. Mais especificamente, Pai afirma que os investimentos no setor caíram desde 2015, ano em que o governo Obama fortaleceu as normas de neutralidade da rede.

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Deixando de lado o fato de que os investimentos da indústria devem ser a medida preferencial do sucesso na política da internet (e que tal melhorar o acesso para os estudantes? Ou o surgimento de inovações como TV por demanda?). Pai não está examinando os fatos: documentos da Comissão de Valores Mobiliários (SEC) revelam um aumento dos investimentos na Internet desde 2015, como demonstrou o grupo Free Press, conhecido por sua defesa da internet livre e aberta. 

Antecedentes. Mas Pai enfrenta um problema jurídico mais grave. Como está querendo exterminar a neutralidade da rede de forma completa, não apenas enfraquecendo-a, terá que explicar a um tribunal tanto a mudança a partir de 2015, como também sua fundamentação para destruir as proibições básicas sobre bloqueio e estrangulamento, que estão em vigor desde 2005 e têm recebido a confiança de forma ampla em todo o ecossistema da internet.

Esta será uma tarefa difícil. O que mudou desde 2004 que agora faz com que o bloqueio ou o estrangulamento dos concorrentes não seja um problema? A evidência aponta fortemente na direção oposta: há uma longa história de bloqueio e bloqueio anti competitivo - muitas vezes oculta - que a FCC teve que parar para preservar a saúde da economia da internet. 

Exemplos incluem os esforços da AT&T para manter o Skype fora dos iPhones e o bloqueio do Google Wallet pela Verizon. Serviços como Skype e Netflix teriam tido uma morte precoce sem as proteções básicas de neutralidade da rede. Pai precisa explicar por que não precisamos mais nos preocupar com esse tipo de ameaça – e porque "Você pode confiar em sua empresa de cabo” não vai bastar.

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Além disso, a FCC está agindo contra o sentimento público, o que pode incentivar o judiciário a se opor a Pai. A política de telecomunicações nem sempre atrai a atenção do público, mas a neutralidade da rede sim, e as pesquisas indicam que 76% dos americanos o apoiam. A FCC, em resumo, está no lado errado da maioria democrática.

Atualmente, o Judiciário torna-se cada vez mais uma força majoritária. Ele sozinho, ao que parece, pode impedir que facções de visão limitada e com interesses próprios consigam que o governo atenda a finalidades injustas e até mesmo vergonhosas. E, portanto, cabe ao Judiciário dar um fim a essa mais recente distorção.

/TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

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