A segunda morte do flâneur

O Facebook está matando a ideia de flanar pela internet

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Por Redação Link
Atualização:

A ideia de zanzar pela internet está sendo assassinada pela organização da rede assim como as transformações de Paris na segunda metade o século 19 matou o flanar

A internet dos anos 90 era como a Paris pré-Haussmann Foto: Estadão

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Outro dia, eu revirava uma pilha de antigos artigos sobre o futuro da internet quando um pequeno e obscuro ensaio de 1998 – publicado num site chamado Ceramics Today, por incrível que pareça – chamou minha atenção. Celebrando o “flâneur cibernético”, o texto falava de um futuro digital brilhante, cheio de mistério e espontaneidade, que aguardava este intrigante usuário da rede. Essa visão do amanhã parecia inevitável numa época na qual “o que a cidade e a rua representaram para o flâneur, a internet e a superestrada da informação passaram a representar para o flâneur cibernético”.

Curioso, decidi desvendar o que ocorreu com o flâneur online. Eles são poucos e difíceis de encontrar, enquanto a própria prática de flanar na rede parece estar em desacordo com o mundo das mídias sociais. O que foi que deu errado? Será que devemos nos preocupar? Conhecer a história do flanar é uma boa maneira de começar a responder estas perguntas. Graças ao poeta francês Charles Baudelaire e ao crítico alemão Walter Benjamin, que viam no flâneur um emblema da modernidade, a figura dele (tratava-se em geral de homens) é associada à Paris do século 19. O flâneur passeava lentamente por ruas e galerias – animadas fileiras de lojas cobertas por telhados de vidro – para cultivar o que Honoré de Balzac chamou de “gastronomia do olhar”.

Embora não ocultasse deliberadamente sua identidade, o flâneur preferia passear incógnito. “A arte que o flâneur domina é a de observar sem ser flagrado”, destacou certa vez o sociólogo polonês Zygmunt Bauman. O flâneur não era antissocial – ele precisava das multidões para desenvolver sua atividade –, mas não se misturava aos demais, preferindo saborear a solidão. E tinha para si todo o tempo do mundo: falava-se em flâneurs que levavam tartarugas para passear.

Ele entrava nas galerias de lojas, mas não cedia ao consumismo; a galeria era antes um atalho para uma rica experiência sensorial – e só depois um templo do consumo. O objetivo era observar, banhar-se na multidão, absorvendo ruídos, o caos, a heterogeneidade, o cosmopolitismo. Ocasionalmente, narrava o que via – investigando tanto a própria intimidade quanto o mundo exterior – na forma de ensaios curtos para jornais diários.

É fácil ver o motivo pelo qual o flanar online pareceu tão atraente nos primeiros dias da web. A ideia de explorar o ciberespaço como território virgem, ainda não colonizado por governos e empresas, era romântica; este romantismo aparecia até no nome dos primeiros browsers (o Explorador da Internet e o Navegante da Paisagem da Rede).

Comunidades como GeoCities e Tripod foram as galerias digitais daquele período, lidando com aquilo que havia de mais obscuro e mais peculiar, sem que houvesse hierarquia organizando-as por popularidade ou valor comercial. Naquele então, o eBay era mais esquisito do que a maioria dos mercados de pulgas; um passeio por suas prateleiras virtuais era mais agradável do que comprar de fato algum dos artigos oferecidos no site.

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Em meados da década de 90, parecia que a internet poderia levar a um inesperado renascimento do flanar. Mas quem sonhava com uma web que serviria como refúgio de boêmios hedonistas e idiossincráticos, provavelmente não sabia a causa mortis do flâneur original.

Avenida. Na segunda metade do século 19, Paris passou por profundas mudanças. As reformas na arquitetura e no planejamento urbano promovidas pelo barão Haussmann no governo de Napoleão III foram particularmente importantes: a demolição de estreitas ruas medievais, o estabelecimento de praças amplas (construídas em parte para melhorar a higiene e em parte para impedir barricadas revolucionárias), a proliferação da iluminação de rua a gás e as crescentes vantagens de passar o tempo em ambientes fechados transformaram radicalmente a cidade.

A tecnologia e as mudanças sociais também tiveram seus efeitos. O tráfego de carros na rua fez de passeios contemplativos uma atividade perigosa. Galerias foram substituídas por lojas de departamentos. A racionalização da vida urbana conduziu os flâneurs ao subterrâneo, obrigando-os a se refugiar num tipo de flanar interno, cujo apogeu é o exílio autoimposto de Marcel Proust em seu quarto (situado, voilà, no bulevar Haussmann).

Algo parecido aconteceu na internet. Transcendendo sua brincalhona identidade original, a rede não é mais para passear – virou lugar de cumprir tarefas. Ninguém mais navega. A popularidade dos aplicativos – que conduzem àquilo que queremos sem que seja necessário abrir o browser, faz do flanar online algo cada vez menos provável.

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O fato de uma parte tão preponderante da atividade contemporânea na rede envolver compras não ajuda em nada. Passear pelo Groupon não é tão divertido quanto caminhar por uma galeria, eletrônica ou não.

O ritmo da internet mudou. Dez anos atrás, um conceito como o tempo real, em que cada tweet e atualização de status é automaticamente indexada, atualizada e respondida, era impensável. Hoje, este é o termo do momento no Vale do Silício. Não se trata de algo surpreendente: as pessoas gostam de velocidade e eficiência.

Mas as páginas de outrora, que abriam lentamente ao som de estranhos ruídos do modem, tinham um inusitado lado poético. Ocasionalmente, a lentidão chegava a nos alertar para o fato de que estávamos sentados diante de um computador. Bem, esta tartaruga não existe mais.

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Enquanto isso, o Google, ao tentar de organizar a informação do mundo, vem tornando desnecessária a visita a sites individuais assim como, gerações atrás, o catálogo da Sears tornou desnecessária a ida a lojas físicas. A atual ambição do Google é responder nossas perguntas – sobre o clima, as taxas de câmbio, o jogo de ontem – ele mesmo, sem levar a nenhum outro site. Digite a pergunta, e a resposta aparece no topo da lista de resultados.

(O impacto de atalhos deste tipo nas buscas não interessa aqui; quem imagina a busca por informações em termos tão puramente instrumentais, enxergando a internet como pouco mais do que um gigante FAQ, dificilmente criará espaços que convidem ao flanar online.)

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Novo barão. Mas, se há um barão Haussmann na internet hoje, ele é o Facebook. Tudo aquilo que torna possível o flanar online – solidão e individualidade, anonimato e opacidade, mistério e ambivalência, curiosidade e o desejo de correr riscos – está sob o ataque desta empresa. E não estamos falando de uma empresa qualquer: com 845 milhões de usuários ativos espalhados pelo mundo, dá para dizer que aonde quer que o Facebook vá, a internet irá atrás.

É fácil culpar o modelo de negócios do Facebook (a perda do anonimato permite que ele lucre mais com os anunciantes), mas o problema é mais embaixo. O Facebook parece acreditar que os peculiares elementos que tornam possível o flanar devem ser eliminados. “Queremos que tudo seja social”, disse Sheryl Sandberg, diretora de operações do Facebook, em entrevista ao programa de TV Charlie Rose alguns meses atrás. Na prática, isso foi explicado pelo chefe dela, Mark Zuckerberg, no mesmo programa. “Preferimos ir ao cinema sozinhos ou com amigos?”, perguntou, respondendo imediatamente: “Com amigos”.

As implicações são claras: o Facebook quer construir uma internet na qual ver filmes, ouvir música, ler livros e até mesmo navegar sejam atividades desempenhadas não só abertamente como social e colaborativamente. Por meio de parcerias com empresas como Spotify e Netflix, ele cria poderosos incentivos que fariam os usuários adotarem ansiosos a tirania do “social”, a tal ponto que desempenhar qualquer uma dessas atividades sozinho seria impossível.

Ora, se Zuckerberg de fato acredita no que disse sobre cinema, há uma longa lista de filmes que eu gostaria de sugerir aos amigos dele. Por que ele não leva a turma para ver Satantango, sete horas de filme de arte branco e preto do húngaro Bela Tarr? A resposta: se fizéssemos uma pesquisa de opinião entre os amigos dele, ou um determinado grupo numeroso de pessoas, Satantango seria quase sempre derrotado por um título que pode não ser o filme preferido por todos, mas que também não vai incomodar ninguém. Eis um exemplo da tirania do social.

Além disso, não parece óbvio que consumir sozinho o que a arte tem de melhor é uma experiência qualitativamente diferente de consumi-lo socialmente? Qual é o motivo de tamanho medo da solidão? Para Zuckerberg, “é melhor estar conectado às pessoas. A vida fica mais rica”. É esta ideia de que a experiência individual seria forma inferior à coletiva que subjaz no “compartilhamento sem atrito” do Facebook – a ideia de que, de agora em diante, teremos de nos preocupar só com o que não queremos compartilhar; tudo o mais será compartilhado automaticamente.

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Para tanto, o Facebook encoraja seus parceiros a construir aplicativos que compartilham automaticamente tudo o que fizermos: os textos que lemos, as músicas que ouvimos, os vídeos que assistimos. Nem é preciso dizer que o compartilhamento sem atrito também ajuda o Facebook a nos vender aos anunciantes, ajudando esses anunciantes a vender seus produtos para nós.

Isto poderia até valer a pena se o compartilhamento sem atrito incrementasse a experiência na rede; afinal, até mesmo o flâneur do século 19 enfrentou cartazes de anúncios nas suas caminhadas. Mas uma coisa é encontrar uma matéria interessante e compartilhá-la com os amigos. Outra bem diferente é inundar os amigos com tudo o que passa pelo seu browser ou app, na esperança de que eles escolham algo interessante pelo caminho.

Pior: quando esse sistema de compartilhamento sem atrito for plenamente operacional, é provável todas as notícias sejam lidas no Facebook, sem que seja preciso sair dos domínios do site para visitar o restante da rede. Vários veículos jornalísticos, como Guardian e Washington Post, já têm aplicativos s que permitem aos usuários ler artigos sem precisar visitar as páginas do veículo.

Como explicou o popular blogueiro Robert Scoble, que escreve sobre tecnologia, num texto recente a respeito do compartilhamento sem atrito, “neste novo mundo, basta abrir o Facebook e tudo o que lhe interessa será exibido sequencialmente na tela”.

É justamente isso que está matando o flanar online: o traço que marca o passeio do flâneur é o fato de ele não saber o que é que lhe interessa mais. Nas palavras do autor alemão Franz Hessel, que colaborava ocasionalmente com Walter Benjamin, “para flanar, é preciso que não haja nada muito definido na cabeça”. Comparado ao universo determinista do Facebook, até o pouco criativo slogan da Microsoft nos anos 90 – “Where do you want to go today?”, ou “Aonde você quer ir hoje?” – soa subversivo e emocionante.

Quem faria essa pergunta tola na era do Facebook? De acordo com Benjamin, a triste figura do homem-sanduíche foi a última encarnação do flâneur. Num certo sentido, todos nós viramos homens-sanduíche, caminhando pelas ruas do Facebook com anúncios invisíveis pendendo de nossas identidades eletrônicas. A única diferença é que a natureza digital da informação permitiu que consumíssemos alegremente canções, filmes e livros ao mesmo tempo em que os anunciamos, desavisados. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Evgeny Morozov é autor do livro The Net Delusion: The Dark Side of Internet Freedom (A desilusão da rede: o lado obscuro da liberdade online) —-Leia mais:Link no papel – 20/02/2012

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