Fim da neutralidade na internet ameaça surgimento de novas empresas

Decisões do novo diretor da FCC podem aumentar hegemonia das empresas de telecomunicação

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Por Farhad Manjoo
Atualização:
Ajit Pai, presidente da FCC, defende que a neutralidade da rede seja revista. Foto: Pablo Martinez/AP Photo

Todos os anos, a internet se torna um pouco menos justa. As empresas que a controlam ficam um pouco maiores, seus poderes se concentram um pouco mais e uma parte de seu idealismo dá lugar a um pragmatismo implacável.

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E se Ajit Pai, o novo diretor da Comissão Federal de Comunicações, fizer o que deseja, tudo indica que essas hegemonias irão se tornar ainda maiores e mais poderosas.

Nominalmente, o tema desta coluna é a neutralidade da rede, um debate sonolento sobre as regras que empresas de banda larga como Comcast e AT&T são obrigadas a seguir quando gerenciam suas redes. Mas, de fato, estamos falando a respeito do crescimento do poder das empresas. Neste momento, a internet não está em uma situação muito boa. As Cinco Temíveis – Amazon, Apple, Facebook, Microsoft e Alphabet, a empresa controladora do Google – estão no comando de praticamente tudo que vale alguma coisa no mundo digital, incluindo sistemas operacionais, lojas de aplicativos, navegadores, infraestrutura de armazenamento na nuvem, e oceanos de dados a partir dos quais criam novos produtos. Um punhado de outras empresas – Comcast, AT&T, Verizon – controlam conexões com e sem fio por meio das quais todos os dados circulam. Antigamente, as pessoas falavam da internet como uma espécie de País das Maravilhas para startups inovadoras, mas nos últimos tempos as coisas andam meio complicadas. E isso nos leva à neutralidade da rede. Essa regra basicamente evita que os fornecedores de banda larga ofereçam tratamento preferencial para alguns conteúdos on-line – ela impede que a Comcast aumente a velocidade de uma empresa de streaming de vídeo que pague mais do que outra, por exemplo. Em meio a muitas batalhas legais, as regras de neutralidade governaram a internet por anos. Em 2015, depois que o presidente Barack Obama defendeu regras mais rígidas, Tom Wheeler, diretor do FCC, conseguiu aprovar regras de neutralidade abrangentes. Contudo, sob o comando do presidente Donald Trump, essa neutralidade está na fila do abate. No fim de abril, Ajit Pai deu início a um processo para afrouxar as regras; e seu ponto de vista provavelmente será aprovado. A luta em torno da neutralidade da rede muitas vezes é vista como uma batalha entre as empresas de telefonia e as empresas de internet – entre provedoras de alto calibre, como a Comcast (que certamente ganhará algum dinheiro com a criação de áreas mais rápidas na internet) e inovadores digitais como o Google (que talvez tenham que pagar). Do ponto de vista do lobby, as duas áreas estão em lados opostos: as empresas de banda larga comemoraram o discurso de Ajit Pai, enquanto a Associação da Internet – um grupo que representa dezenas de empresas grandes e pequenas na internet, incluindo Amazon, Facebook e Google – se opuseram aos novos rumos. Ainda assim, a ideia de uma batalha contra as empresas de telefonia representa uma narrativa cada vez mais simplista. As empresas de telecomunicações estão se tornando empresas de internet (a Verizon é dona da AOL e do Yahoo), as empresas de internet também estão investindo em telecomunicações (a Alphabet conta com um serviço de internet por fibra ótica), e todas estão virando estúdios de filme e TV (a Amazon tem até uma estratégia para ganhar Emmys). Portanto, a melhor forma de pensar sobre as regras não é em termos do que essas empresas fazem, mas no que diz respeito a seu tamanho. O fim da neutralidade na rede ajuda empresas grandes ou pequenas? O fim das regras tornaria a internet um espaço mais justo, mais dinâmico e mais inovador? Ajudaria a criar uma atmosfera mais favorável para o possível surgimento de concorrentes das Cinco Temíveis? Provavelmente não. Na verdade, elas poderiam aprofundar ainda mais seu poder. Tim Wu, professor de Direito na Universidade de Columbia e colunista de opinião do New York Times, que desenvolveu o conceito de “neutralidade da rede”, afirmou que o surgimento de gigantes da internet alterou a forma como ele pensa a respeito do tema. Em 2003, quando começou a defender as regras de neutralidade, Wu estava interessado em preservar os inovadores digitais contra os oligopólios de telecomunicações que bloqueavam o desenvolvimento de novas tecnologias em suas redes. Se as empresas de telefonia trouxessem para a internet as mesmas regras das redes de telefone, conectar aparelhos não aprovados na rede (como um roteador Wi-Fi, por exemplo), ou utilizar programas que pudessem competir com os interesses comerciais da empresa de telefone (como o Skype, por exemplo) poderiam ser proibidos. Mas atualmente, Wu acredita que as regras de neutralidade têm um propósito mais amplo – proteger os inovadores não apenas contra as empresas de banda larga, mas também contra gigantes da internet que controlam a rede. “No início, tentávamos salvar empresas como o YouTube. Agora temos que salvar a internet do YouTube, assim como temos que preservar o YouTube.” Para termos uma ideia do que ele quer dizer, imagine que os gigantes da internet de hoje têm várias formas de se proteger contra a concorrência. Primeiro, sempre que um concorrente se destaca, os gigantes também levam sua parte – recebem comissão sobre a venda de aplicativos, pagamento pelo armazenamento de dados na nuvem e por anúncios feitos nos aplicativos, entre outras coisas. E quando as startups criam um serviço capaz de ameaçar os negócios das Cinco, elas simplesmente copiam suas fórmulas, e acrescentam suas versões em seus produtos mais populares. Basta ver como a Apple lançou um serviço de streaming para competir com o Spotify, ou como o Facebook copiou todas as características mais populares do Snapchat. Contudo, Wu destaca que, ao menos, os gigantes precisam fazer alguma coisa para reagir à concorrência. Sem as regras de neutralidade, basta que as empresas comprem acesso às linhas rápidas on-line, evitando facilmente que os concorrentes funcionem nos telefones dos usuários. “O Snapchat cresceu na era da neutralidade da rede e acredito que deva parte de sua existência à neutralidade. O Facebook não foi capaz de destruir o aplicativo ainda, e o trabalho seria mais fácil em um mundo sem neutralidade na rede. A questão é, o Facebook e a Comcast vão se unir para impedir o surgimento de um futuro Snapchat?”, disse Wu. Os gigantes da internet – que, não se esqueçam, são favoráveis à neutralidade – não concordam que as regras também ajudam a controlá-las, apenas que podem ajudar startups. “As empresas de internet de todos os tamanhos acreditam que as atuais regras de neutralidade do FCC funcionam, e que essas ferramentas de proteção ao consumidor não devem ser alteradas”, afirmou Noah Theran, porta-voz da Associação da Internet, por e-mail. Ele acrescentou que: “Desde seu surgimento, o Vale do Silício acredita que as melhores ideias podem competir e ganhar no livre mercado. Os consumidores e o ecossistema da internet se beneficiam quando as startups são capazes de superar as gigantes do setor, e a neutralidade da rede é fundamental para preservar esse ethos”. Enquanto isso, opositores da neutralidade da rede argumentam justamente o contrário: que acabar com as regras poderia ajudar a fortalecer as startups. “As grandes empresas já têm inúmeras vantagens em termos de velocidade porque contam com enormes infraestruturas on-line”, afirmou Bret Swanson, que estuda políticas de telecomunicações no Instituto Americano de Empresas, um think tank conservador. “Mas as startups não têm essa infraestrutura enorme, nem contam com bilhões e dólares para construí-las. Elas precisam utilizar coisas como canais prioritários para entrar nesse mercado competitivo”. Em outras palavras, caso as empresas de banda larga comecem a cobrar para acelerar determinados conteúdos, as startups podem utilizar esse recurso para que seus conteúdos sejam tão rápidos quanto o das gigantes de tecnologia. Pode ser. A teoria de Swanson se baseia na ideia de que as novas regras não permitirão práticas injustas. Se Google, Facebook e outras grandes oferecerem milhões às empresas de banda larga para bloquear o serviço de uma concorrente, Swanson afirmou que isso daria início a investigações antitruste e outras consequências negativas para elas. “As leis antitruste de concorrência já são válidas, de forma que as empresas não podem simplesmente arrancar a concorrência do caminho”, afirmou. Eu não sou tão otimista. Os reguladores norte-americanos não demonstraram qualquer interesse por limitar o poder das gigantes de tecnologia – ou de qualquer outra empresa – quando o assunto são as práticas anticompetitivas. Não acredito que isso vai mudar no governo Trump. As gigantes não param de crescer. Se permitirmos que elas comprem todas as linhas de acesso rápido na internet, estaremos abrindo mão de mais uma forma de controlar seu poder.

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