Quem é Travis Kalanick, o homem por trás do Uber

Altos e baixos de cofundador e ex-presidente executivo determinaram a trajetória da empresa até aqui; futuro é de incerteza para os dois lados da equação

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Por Bruno Capelas
Atualização:
Travis Kalanick, o ex-presidente executivo do Uber, sabia do pagamento de US$ 100 mil a hackers Foto: Julie Glassberg/NYT

Grandes empresas de tecnologia são, muitas vezes, reflexos de seus líderes. Foi assim com a Microsoft e Bill Gates, a Apple e Steve Jobs, Facebook e Mark Zuckerberg. Com Travis Kalanick e o Uber, não é diferente.

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Apesar de não ter criado a primeira versão do aplicativo de transportes que mudou a mobilidade urbana como a conhecíamos – a honra pertence a Garrett Camp, cofundador do Uber –, Kalanick tornou-se seu líder e construiu o Uber à sua imagem e semelhança no período em que esteve junto, como “conselheiro”, e depois à frente da empresa como presidente executivo, entre 2010 e esta semana.

Para o bem e para o mal: muito do crescimento global do Uber se deve à competitividade de Kalanick. Afinal, hoje, a empresa está em 66 países mais de 500 cidades do mundo. No entanto, esse caminho de crescimento rápido também foi forjado com a cultura de trabalho do próprio Kalanick: agressiva, workaholic, marcada pela busca do resultado a qualquer custo.

Assim como várias histórias do Vale do Silício, a de Kalanick também é marcada por fracassos ao meio do caminho: nascido em 1976, em Los Angeles, na Califórnia, ele estudou engenharia de computação na Universidade da Califórnia. Ao se formar, criou dois serviços de compartilhamento de arquivos, o Scour e o Red Swoosh.

O primeiro teve de declarar falência para não ser processado por US$ 250 bilhões pela indústria fonográfica e cinematográfica dos EUA. O segundo foi vendido por US$ 19 milhões, mas fez Travis voltar a morar na casa dos pais para economizar dinheiro. O comentário dele sobre aquele período? “Eu não estava conseguindo ‘pegar mulher’. Era horrível”, disse o executivo anos mais tarde, em 2011, quando o Uber já somava milhares de caronas realizadas em São Francisco. 

A experiência de Travis nas duas empresas foi o que o levou até o Uber em 2009: Garrett Camp, Oscar Salazar e Conrad Whelan tinham feito o primeiro protótipo do serviço, mas precisavam ir além. Quando ele chegou, a empresa ainda se chamava UberCab e tinha como foco o mercado de transporte particular de alto padrão – os carros pretos, de luxo, que até hoje fazem parte da categoria Uber Black.

Em pouco tempo, porém, Kalanick deixou o papel de conselheiro para se tornar seu presidente executivo – e sua face pública. Com ele, o UberCab se tornou só Uber em 2011. No ano seguinte, o executivo lançou o Uber X, a faceta mais popular do aplicativo até hoje, em que qualquer pessoa poderia usar seu carro para dirigir por aí e ganhar algum dinheiro no tempo livre. Aos passageiros, a promessa era de viagens 30% mais baratas que em um táxi. Em menos de seis meses, o serviço saltou de uma para 35 cidades nos EUA. 

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O crescimento rápido nos fez a empresa receber mais e mais aportes – em agosto de 2013, ao receber mais de US$ 300 milhões do GV, braço de investimentos do Google, o Uber se tornou um unicórnio, sendo avaliado em US$ 3,5 bilhões. Na rodada seguinte, em junho de 2014, a avaliação subiu para US$ 18,2 bilhões. Seis meses depois, US$ 40 bilhões – e foi rodando até chegar num pico de US$ 62,5 bilhões, fazendo a empresa valer mais que a Ford e a GM mesmo sem ter um único carro. Não foi só o Google que entrou nessa: Jeff Bezos, da Amazon, Microsoft, os bancos Goldman Sachs e Morgan Stanley e até o rapper Jay-Z investiram na empresa. 

O sucesso, porém, subiu à cabeça: em vez de oferecer qualidade, como no começo, a empresa passou a focar nos preços cada vez mais baixos e crescer de forma desenfreada para justificar os investimentos. “Quando você troca a qualidade pelo preço, a empresa cai”, avalia Fabro Steibel, professor da ESPM-RJ. 

Foi aí que os problemas começaram a surgir: não poucas vezes, o Uber rompia com a legislação de transporte particular das cidades – e até criou um software para espionar fiscais que poderiam multá-lo. Para continuar faturando, a empresa gerou um sistema em que motoristas não dirigiam nas horas vagas, mas sim transformaram o aplicativo em sua principal ocupação, mesmo sem um contrato de trabalho estabelecido – no Brasil, hoje a empresa enfrenta diversos casos de motoristas pedindo vínculo empregatício na Justiça do Trabalho. Em vez de uma tarde livre, jornadas de 12, 14 e até 16 horas por dia se tornaram comuns para muitos “parceiros”. 

Em certos mercados, porém, a receita não funcionou – na China, por exemplo, o Uber foi forçado a recuar após torrar US$ 1 bilhão ao ano sem conseguir se tornar líder de mercado. Em junho de 2016, a empresa desistiu – e vendeu suas operações à rival local Didi Chuxing. 

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Internamente, a cultura de trabalho também não parecia muito melhor: denúncias de assédio moral e sexual não receberam o devido tratamento por Kalanick. Segundo ex-funcionários, o clima de “brodagem” (como jovens universitários norte-americanos) era mais que presente na empresa – antes de uma festa em 2013, ao recomendar que funcionários em uma mesma hierarquia não tivessem relações sexuais, Kalanick se lamentou em um comunicado enviado aos empregados do Uber. "Isso significa que eu ficarei celibatário nesta noite. #QueVidaTriste". 

Em fevereiro, o próprio presidente discutiu com um motorista do Uber – e foi filmado. Ao pedir desculpas, ele reconheceu sua dificuldade em liderar. A participação do executivo como conselheiro de Donald Trump na Casa Branca também não ajudou a empresa – e gerou a hashtag #deleteuber. “É difícil saber no dia a dia, mas a visão de fora é de alguém que é autoritário, centralizador e não é enérgico com atitudes que, para outros setores, são irregulares”, comenta Steibel.“As coisas chegaram num ponto em que ele começou a só gerar notícias ruins. No mercado, pequenas informações têm grandes impactos.”

Além de não conseguir lidar com a pressão de investidores, imprensa e do conselho de administração, Kalanick ainda teve recentemente um severo problema pessoal: em maio, sua mãe morreu em um acidente de barco e o pai teve ferimentos graves. O turbilhão de questões fez o executivo pedir licença do cargo de presidente na última semana. Para os investidores, não era suficiente: em uma carta nesta terça-feira, 21, eles pediram a Kalanick que renunciasse ao cargo e ele cedeu.

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Longe de sua própria criação pela primeira vez em quase uma década, o panorama é de incerteza. Para o Uber, a transição para uma cultura de trabalho diferente será um desafio – ainda mais quando boa parte de seus funcionários foram contratados seguindo o “padrão Kalanick de qualidade”. Para o executivo, há duas dúvidas: ele será capaz de deixar o ego de lado e ajudar o Uber, ao mesmo tempo em que pode criar algo novo e tão visionário quanto o Uber? A viagem está apenas começando.

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