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Impressão Digital

A revolução digital tem de sair da tela

No Ano Novo, resta tirar a cara de dentro do computador

Por Alexandre Matias
Atualização:

No Ano Novo, resta tirar a cara de dentro do computador

Em setembro deste ano, quando transformou mais uma mudança de interface do Facebook em evento público, Mark Zuckerberg entrou no palco um tanto estranho. Em alguns segundos, deu para notar que não era Zuckerberg - e sim o ator do programa humorístico Saturday Night Live que o interpreta, Andy Sandberg, fingindo ser o criador da maior rede social do mundo.

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Não há como saber se Steve Jobs, em seus últimos dias de vida, viu a performance, mas se o fez, deve ter grunhido, ao mesmo tempo em que ficava pasmo com a ingenuidade de Zuckerberg e o ridicularizava em pensamento.

Isso porque doze anos atrás, antes das apresentações de Steve Jobs se tornarem um fenômeno para além do círculo de carolas da Apple, ele havia feito essa mesma piada, ao convidar o ator Noah Wyle para apresentar a Macworld de 1999. Noah havia acabado de interpretar Jobs num filme feito para TV naquele mesmo ano - o cult Piratas do Vale do Silício - e o criador da Apple não pestanejou ao colocá-lo no palco para fazer o seu papel.

Mas diferente do que aconteceu com Zuckerberg, anos depois, o encontro do original com a cópia não foi um cumprimento boçal ("mas eu sou o verdadeiro Zuckerberg!") e sim outra caricatura de Steve Jobs, dessa vez, feita por ele mesmo. Logo que Wyle começa a se entusiasmar com um "produto novo realmente ótimo", Steve o interrompe para entrar no palco e lhe explicar como é o jeito certo de imitá-lo. Era o Jobs hiperbólico encontrando o Jobs control freak no mesmo palco. E o original conseguia ter mais carisma ainda que o antigo protagonista do Plantão Médico.

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Corta para 2011. O principal nome do mundo digital é um nerd sem carisma, o cacique de uma tribo de 800 milhões de pessoas que passam o dia em frente a uma tela dizendo o que curtem. Zuckerberg bem que tentou, mas está longe de conseguir ocupar a vaga deixada por Steve Jobs. E isso é um problema, porque o mundo digital de Jobs e Mark eram relativamente parecidos - ambos queriam obrigar seus públicos a se firmar em torno de uma mesma marca, habitando um ambiente eletrônico administrado por uma empresa que faz o que quiser com dados pessoais de seus consumidores.

O Facebook de Zuckerberg já é conhecido por isso e o ano terminou com o próprio Mark postando em seu blog um pedido de desculpas em relação aos "erros" cometidos no passado - quando o site mudava os termos de uso sem avisar seus usuários, por exemplo. A Apple de Jobs também teve de se desculpar publicamente sobre a denúncia de que os passos dos donos de iPhone estavam sendo vigiados pela própria empresa. É o Big Brother capitalista - em que uma empresa, e não um governo, acompanha cada pequeno passo dado.

A ausência de carisma de Zuckerberg não é um exemplo isolado - é só o mais emblemático. Nenhum dos grandes nomes do mundo digital hoje, no Vale do Silício ou fora dele, proporciona o fator de admiração instigado por Jobs. Nem Larry e Sergey do Google, nem Steve Ballmer da Microsoft, nem ninguém do Twitter, da Zynga, da Sony ou da Rovio.

Os executivos voltaram a ter cara de executivos e o popstar digital - a era de ouro de Jobs e Gates - parece ter ficado no século 20.

Isso também não é exclusividade das empresas de tecnologia. Os líderes do século 21 pouco inspiram. É um fenômeno que tem a ver com a frustração e a angústia que alimenta o oba-oba da curtição no Facebook ou o consumismo desenfreado da era pós-iPhone.

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Todos querendo preencher um vazio espiritual na marra, em grandes quantidades. Milhares de amigos, dúzias de gigabytes, milhões de MP3, não-sei-quantos de memória RAM ou de banda larga.

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Acontece que ao mesmo tempo em que 2011 viu o fim do grande produto da Apple - o próprio Steve Jobs -, também assistiu a esse mesmo vazio sendo preenchido longe das biosferas digitais. Milhares de pessoas tomaram as ruas em centenas de cidades ao redor de todo o mundo para reclamar dessa insatisfação generalizada.

Começou logo em janeiro com a Primavera Árabe, passou pelos protestos na Espanha, pelos tumultos na Inglaterra e culminou com o movimento Occupy, que a princípio ocupava apenas o Zuccotti Park, perto de Wall Street, em Nova York, e depois tornou-se global. Até mesmo as marchas realizadas na Avenida Paulista e o infame Churrascão da Gente Diferenciada em Higienópolis, em São Paulo, fazem parte dessa recusa planetária, que usa o próprio Facebook e as câmeras em telefones celulares para divulgar o que está acontecendo - a favor e contra.

Muitos desses protestos começaram especificamente a partir de denúncias feitas na internet. Fatos que foram simples como o vídeo online que deu origem à maior manifestação popular na Rússia desde o fim da União Soviética ou arbitrários como a decisão do governo de Hosni Mubarak de cortar a internet do Egito.

Esse movimento popular planetário sem liderança, sem ideologia e sem vínculos partidários acabou se tornando uma espécie de materialização da própria lógica da internet - em que ninguém controla ninguém.

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Portanto, foi natural e incontornável a identificação do levante com o discurso do grupo de hackers Anonymous, que teve seu símbolo agregado definitivamente aos novos manifestantes.

E a máscara do terrorista inglês Guy Fawkes, redesenhada por David Lloyd no libelo libertário em quadrinhos V de Vingança, de Alan Moore, deixou de ser um ícone na tela como era na época em que representava apenas os Anonymous para ganhar as ruas do planeta. Todo mundo se identificando com um não-símbolo, o logotipo do anonimato.

Junte as pontas. Esses dois acontecimentos distintos - a morte de Steve Jobs e a série de protestos populares pelo planeta - parecem não ter comunicação entre si, mas o fato é que sem um líder carismático o suficiente para ser admirado, as multidões vão exigir cada vez mais. E vão começar a entender que a lógica fechada que querem impor à internet - e à rotina offline - é oposta às inovações culturais que a tecnologia digital têm proporcionado ao mundo. O direito autoral deve ser flexibilizado; o direito ao anonimato, preservado; o acesso ao conhecimento, mantido. Alianças e parcerias fazem parte da natureza do ser humano antes ou depois da internet.

É quando descobriremos que a revolução digital não termina na tela - e sim quando alcançamos quem está do outro lado dela. A essência desse zeitgeist materializado que entrou em nossas vidas reside em seu nome. A internet é uma rede de interconexões que não está limitada apenas a quando estamos na frente do computador. Somos praticamente anfíbios e habitamos o mundo seco (offline) e o molhado (online) ao mesmo tempo. Mas ainda estamos encantados com a descoberta do respirar debaixo d'água que é viver na internet. Resta agora começar a tirar a cara de dentro do computador e perceber que a vida a nosso redor. 2012 nos espera. Será um ano memorável e sairemos todos melhores do que entramos.

Feliz Ano Novo.

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