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O poder corrompe...

Na queda de braço entre a Uber e o governo, só a Apple salva

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Por Nelson Lago
Atualização:
FOTO: Rod Waddington  Foto: Estadão

Você já deve ter ouvido falar em alguma polêmica envolvendo a Uber, já que ela tem aparecido na mídia com regularidade por conta dos conflitos com taxistas e das dúvidas sobre a legalidade dos seus serviços em diversas localidades. A empresa, no entanto, vai mais além: de práticas comerciais de ética duvidosa à intimidação, passando pela naturalidade com que o sexismo é aceito na companhia e pelo desrespeito à privacidade dos usuários, a Uber tem tido problemas sérios de imagem junto a usuários, funcionários e investidores.

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Para além dessas controvérsias, a Uber é famosa por seu descaso quanto à legislação e aos legisladores. Em geral, isso fica evidente pelas diversas maneiras pelas quais a empresa promove a continuidade de seus serviços em cidades que declaram seu uso ilegal. No entanto, aqui também a empresa surpreende, ignorando reiteradamente a autoridade do departamento de trânsito em diversos casos mas, principalmente, tentando ativamente enganar legisladores e fiscais. Neste último caso, a Uber utilizava diversos mecanismos para identificar potenciais agentes fiscalizadores tentando utilizar o serviço e os impedia de ter acesso aos motoristas.

Dado esse histórico, não é de surpreender que a empresa também tenha tido atitude similar frente à Apple. Normalmente, um aplicativo só pode ser instalado em um iPhone se for baixado da Apple Store e, para estar disponível na Apple Store, o aplicativo deve atender a diversos requisitos definidos pela Apple. A Uber desrespeitou as regras da Apple com vistas a identificar motoristas promovendo fraudes através do aplicativo, mantendo um registro de aparelhos "conhecidos" mesmo após a remoção do programa. A empresa ainda incluiu um mecanismo para desabilitar o sistema em aparelhos localizados dentro da sede da Apple para impedir que essa característica fosse detectada; a Apple, no entanto, acabou por descobrir o truque.

A parte interessante desse assunto, no entanto, é que a Uber costuma ser lenta em cumprir requisitos legais e, muitas vezes, apenas alega atender a normas sem de fato fazê-lo. No caso da Apple, no entanto, bastou uma conversa entre o CEO das duas empresas para eliminar o problema, já que a remoção do aplicativo Uber da loja da Apple resultaria imediatamente em prejuízos enormes para a Uber, além de abrir amplo espaço para seus concorrentes. O poder da Apple aqui é muito maior que o de qualquer agência regulatória.

Como aconteceu há algum tempo, pode parecer que a Apple é a grande salvadora dos usuários de tecnologia. No entanto, vale relembrar a frase de Lord Acton: o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente. O controle da Apple sobre seus dispositivos e, por extensão, sobre seus usuários, é muito grande: a falta de regulamentação na área de tecnologia não resulta na ausência de estruturas de poder, mas sim na transferência desse poder dos agentes do Estado para agentes privados. No caso da Apple, pode ser que hoje alguns dos interesses da empresa estejam alinhados com o que consideramos ético, mas não podemos esquecer que o que move qualquer empresa é o lucro e que, portanto, seus interesses podem mudar.

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No fim das contas, em um mundo em que até algo tão simples quanto a privacidade individual é ameaçada de maneira cada vez mais corriqueira, não é papel da Apple (ou de qualquer outra empresa) ser o fiscal da moralidade no meio tecnológico. Resta saber de quem é.

* Nelson Lago é gerente técnico do CCSL-IME/USP

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