PUBLICIDADE

Foto do(a) blog

O lado livre da internet

O software proprietário sempre existiu?

Ao contrário do que muitos podem pensar, a prática de disponibilizar o código do software e compartilhá-lo é anterior à criação de programas proprietários.

Por CCSL
Atualização:

Por Aracele Torres*

PUBLICIDADE

Quando desconhecemos a origem das coisas, tendemos a tratá-las como naturais, como se estivessem entre nós desde sempre. Com o software proprietário pode acontecer isso: podemos ter a sensação de que, desde que os primeiros programas foram criados, eles já nasceram com o seu código fechado e, só então, nasceu o movimento pelo software livre para combater essa prática. Mas, ao contrário do que muitos podem pensar, a prática de disponibilizar o código do software e compartilhá-lo é anterior à criação de programas proprietários.

Antes do software proprietário nascer, o que ocorreu a partir dos anos 1970 e 1980, havia, no ambiente universitário, nos clubes hackers e mesmo no ambiente empresarial, a prática muito comum de compartilhamento de códigos. Empresas como a IBM, por exemplo, costumavam colocar o código do seu software em domínio público. Não era ainda o que se poderia chamar hoje de software livre, porque esse conceito foi criado nos anos 1980 pela Free Software Foundation, mas era uma espécie de precursor desse tipo de software e forneceu a base ética do projeto de Richard Stallman.

 Foto: Estadão

Mas por que havia essa cultura do compartilhamento, mesmo no ambiente empresarial? Algumas explicações podem estar no fato de que, até a metade dos anos 1960, a computação era muito centrada na máquina e as empresas se preocupavam mais com o desenvolvimento do hardware que com o do software. Portanto, elas não acreditavam na possibilidade de ganhar dinheiro com a venda de software, até porque os programas de computador eram produzidos por demanda, em menor escala, e para cada máquina era escrito um código específico para sua arquitetura. Não era comum a produção de um software padrão, como hoje, que poderia ser executado em diversas arquiteturas.

Além disso, nesse momento o uso dos computadores ainda era restrito ao ambiente científico e militar, e as máquinas produzidas eram vendidas para o Estado. Os programadores também eram majoritariamente militares, ou seja, havia poucos desenvolvedores civis disponíveis no mercado. Esse cenário começa a mudar quando os computadores passam a ser usados no ambiente empresarial para o processamento de informações, a partir da segunda metade dos anos 1960. Com isso, aumenta-se a produção das máquinas, o seu uso e, consequentemente, a demanda por mão-de-obra civil qualificada para programá-las.

Publicidade

O desenvolvimento das linguagens de programação, que antes eram precárias, começa a se difundir e melhorar. Parte disso talvez se deva ao fato de que os primeiros cursos de Ciência da Computação também começam a surgir a partir de 1965. Embora já existissem disciplinas de Computação nas universidades norte-americanas desde os anos 1950, em departamentos como os de Matemática e Engenharia Elétrica, departamentos específicos para Computação só seriam criados quinze anos depois.

Com essa abertura da informática para o mercado civil, novas necessidades em torno da produção de software são geradas. O software, que antes era vendido como serviço ou dado de graça pelas empresas junto com o hardware, passa a contar com um mercado consumidor maior e vai, gradualmente, se transformando num produto potencialmente lucrativo. Com a criação dos computadores pessoais, nos anos 1970, o processo de transformação do software de serviço a produto se acelera. As empresas agora teriam que produzir programas padronizados, robustos e flexíveis o suficiente para serem executados em qualquer máquina, independente da sua arquitetura. Isso implicava na necessidade de proteger seu código dos usos "indesejáveis" que poderiam prejudicar o lucro que as empresas teriam com a sua venda. Era o nascimento da indústria do software. E que nascia tendo por padrão a produção de códigos fechados.

Para garantir o uso de copyright por padrão nos códigos-fonte, as empresas também conseguiram, junto ao governo norte-americano, a aprovação de uma lei, em 1974, que considerava programas de computadores como objeto de copyright. E assim estava amparada legalmente a prática de fechar o acesso ao código do software. Nos anos 1980, quando essas mudanças começam a ser sentidas de fato, nasce o projeto de retorno às origens "livres" do desenvolvimento de software, proposto por Richard Stallman e concretizado pela criação do Projeto GNU. Era a tentativa de restauração de uma cultura hacker morta, como ele próprio diz.

Hoje temos grandes empresas que são referência em software proprietário como, por exemplo, a IBM, mas que reconhecem a importância do software livre (mesmo que apenas no nível técnico) e que investem milhões no seu desenvolvimento. Para o movimento que defende o software livre não é o ideal defender a técnica sem levar em conta também as questões sociais. Ainda assim, uma mudança de foco no cenário atual da indústria do software é improvável, pois  exigiria o abandono de uma lógica capitalista baseada  no lucro através do monopólio sobre a informação. A quebra desse monopólio é um dos objetivos que o movimento pelo software livre deseja alcançar. A sua luta é para que a informação seja uma propriedade de todos e não apenas de um ou de poucos.

Aracele Torres é mestre em história social pela FFLCH/USP com o trabalho "A tecnoutopia do software livre: uma história do projeto técnico e político do GNU"

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.