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Deu no New York Times

Como projetar um produto de sucesso

Quem dita as necessidades de um aparelho é seu contexto de uso

Por David Pogue
Atualização:

Quando a Cisco assassinou a querida câmera Flip alguns meses atrás, muitas pessoas ficaram chocadas e frustradas - e eu me incluo entre elas. Aquela pareceu ser simplesmente uma maneira extremamente desajeitada e insensata de exterminar um aparelho icônico e muito popular.

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Continuo a ler, tanto na rede quanto nos jornais, que a Cisco assassinou a Flip porque o destino já tinha sido traçado: os smartphones têm agora o recurso de gravar vídeos, e por isso ninguém mais precisaria de um dispositivo que desempenhasse uma única função.

Já escrevi antes sobre o tema dos aparelhos de múltiplas funções versus os dispositivos de função única. Mas, hoje, apresento aqui um ensaio especialmente articulado sobre este assunto. Trata-se de um post escrito pelo convidado Nasahn Sheppard, diretor de desenho industrial da Smart Design, a empresa que criou a própria câmera Flip.

 Foto: Estadão

Mas, por melhor que fosse meu canivete suíço, quando voltei para casa, não foi ele que usei para preparar o jantar. Por que não pensei em usá-lo como minha principal ferramenta na cozinha? Porque sua versatilidade tem um preço. Nas minhas viagens, o canivete era perfeitamente adequado às minhas necessidades; mas, em casa, ele é... completamente inadequado, na verdade.

O contexto dita as dimensões das necessidades das pessoas. E a maneira com a qual as pessoas vivenciam os produtos depende profundamente do contexto no qual estes são utilizados.

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Hoje em dia, os smartphones são promovidos como verdadeiros equivalentes dos canivetes suíços -- dispositivos extremamente versáteis que podem ser adaptados para todas as situações. Estão alterando fundamentalmente nossa maneira de nos comunicar, fazer negócios, pensar na computação e na diversão. Como queridinhos do mundo da tecnologia, eles parecem estar destinados a tirar do mercado os aparelhos que desempenham uma única função. Um caso recente serve como exemplo desta lógica: a Cisco decidiu meses atrás "aposentar" a marca de câmeras Flip. Imediatamente, todos apontaram o dedo para o smartphone, acusado de ser o motivo de tal decisão. A história é mesmo boa, mas está muito longe de explicar o verdadeiro motivo que levou à morte da Flip.

De acordo com a firma de pesquisas Gartner, as vendas de smartphones estão aumentando muito. Mas, coletivamente, eles representam um total de apenas 297 milhões de unidades, o equivalente a menos de 19% do mercado mundial de celulares. Seu crescimento vai continuar, é claro, e tais aparelhos desempenharão um papel cada vez mais importante na vida das pessoas. Mas eles jamais poderão ser uma solução convergente singular. É possível que um dia o smartphone seja capaz de destravar as portas do carro e pilotá-lo, mas isto não significa que vamos passar a usá-lo em lugar do volante. Em certos contextos, é simplesmente melhor fazer muito bem uma única tarefa do que ser capaz de apenas dar conta de cinco funções diferentes. Assim como o canivete suíço, o smartphone funciona bem em certas situações, mas fracassa em outras. As pessoas ainda preferem o conforto de assistir a conteúdos audiovisuais numa TV de tela grande, de digitar em teclados completos, e de fazer um telefonema mais extenso num telefone confortável.

Os dispositivos de função única ainda são lançados no mercado e continuam a fazer sucesso porque se concentram nos contextos de uso da vida real. O Kindle é um grande exemplo disto. O aparelho tem grande potencial para ser "mais", mas a Amazon se mostrou bastante contida na decisão de mantê-lo simples e concentrado nos prazeres de uma leitura em formato mais extenso.

Este tipo de design específico não é fácil de criar. Tenho certeza que é grande a pressão para que o Kindle incorpore outras funcionalidades, tornando-se assim mais complexo e desajeitado. Mas é o comedimento que faz do Kindle um aparelho tão fantástico. O iPad, um smartphone de grandes proporções, não tirou o Kindle do mercado como profetizado por muitos, e os dois coexistem normalmente.

A empresa para a qual trabalho, Smart Design, teve o privilégio de ser a parceira da Pure Digital Technologies, pequena empresa iniciante repleta de pessoas apaixonadas e cheias de grandes sonhos; o resultado de nosso trabalho conjunto foi a linha de câmeras Flip Video. A visão que partilhávamos era a de uma câmera de vídeo simples e fácil de usar que desse às pessoas a capacidade de registrar e mostrar as imagens de suas vidas.

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Ao longo do desenvolvimento da Flip, houve uma pergunta que a equipe se fez repetidas vezes: "Quais são os elementos que podemos excluir, e não incluir?" Esta simples pergunta orientou cada decisão do projeto. O resultado foi um produto que o público compreendeu imediatamente, permitindo às pessoas que incorporassem o vídeo a suas vidas de maneiras que nunca tinham imaginado antes.

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Para uma ampla variedade de pessoas, o contexto de uso do aparelho era claro. A câmera chegou até a transformar minha filha de cinco anos na Spielberg da família. Muitos dos pequenos toques que ajudaram a fazer da Flip um incrível sucesso podem ser encontrados no Kindle e em outros dispositivos de função única disponíveis atualmente no mercado.

Apesar de responder por menos de 3% do total das vendas globais de celulares, o sucesso do iPhone não tem igual. O aparelho se mostrou um grande trunfo para a Apple. Então, por que a empresa não se livrou dos iPods, dos Nanos e dos Shuffles? Com a versatilidade do iPhone, será que estes outros produtos de função única não estariam fadados a encalhar? A resposta curta pode ser: às vezes, tudo de que precisamos é um Shuffle. Mais uma vez, a necessidade é determinada pelo contexto.

Em setembro de 2009, a Apple lançou a quinta geração do Nano. Durante a apresentação do aparelho feita por Steve Jobs, ele mostrou um produto da concorrência: a Flip. "Este mercado está crescendo muito, e queremos participar dele", disse Jobs. Com uma Flip mostrada no telão da apresentação, Jobs deu início a uma comparação lado a lado entre o novo Nano e a Flip. Ele prometeu duas vezes mais memória, um formato muito menor, e excelentes capacidades de gravação e reprodução de vídeos. As implicações eram claras: a Flip era um aparelho gordo de função única que estava prestes a ser desbancado pelo finíssimo Nano.

Imediatamente, os críticos anunciaram a morte da Flip, mas, na verdade, o que ocorreu foi exatamente o contrário. Depois de sua breve aparição como convidada naquela apresentação, as vendas da Flip continuaram a acelerar a um ritmo surpreendente. E, na versão seguinte do Nano, a Apple decidiu remover os recursos de gravação de vídeo. O vídeo não se encaixava muito no cenário que a Apple previu para o uso do Nano. Tratava-se de um problema de contexto.

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A Flip foi a líder incontestável de uma categoria que ela mesma ajudou a criar. Foi responsável por alterar fundamentalmente os parâmetros do mercado das câmeras de vídeo. Principalmente, o aparelho fazia exatamente (e apenas) aquilo que prometia; seu design divertido, acessível e específico permitiu que as pessoas capturassem e compartilhassem momentos breves e casuais de suas vidas. Enquanto pai, os momentos da vida que desejo registrar são fugazes. Sacar o smartphone, iniciar um aplicativo e esperar até que a captura de vídeo comece fará com que, invariavelmente, o momento passe antes que eu possa registrá-lo.

Meu fiel canivete suíço continua de prontidão para os momentos em que levo a família para passar férias. Mas eu provavelmente levarei também minha Flip.

Deve haver motivos para que a Cisco tenha decretado o fim da Flip, mas o smartphone não está entre eles.

Publicado originalmente em 16/06/2011

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