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Deu no New York Times

Mensagens de ódio e a nova guerra religiosa na tecnologia

O recado de um leitor:

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Por Murilo Roncolato
Atualização:

"Seu artigo publicado hoje no New York Times foi uma idiotice. O Galaxy S III é um celular de nerds, um verdadeiro desastre em termos de hardware, sem personalidade nem coração. O aparelho não passa de mais um celular de última geração sem nenhuma novidade digna das novas tecnologias que traz. Mais pixels e nenhuma visão. Antes você sabia escrever. Agora só produz esse lixo?! Seria melhor demiti-lo e colocar no seu lugar alguém que tenha ideia do que está fazendo."

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Receber mensagens deste tipo é algo que faz parte do trabalho de um crítico de tecnologia. Tenho certeza que os críticos de teatro, de música e de arte também recebem sua parcela de mensagens elogiosas. "É impossível agradar a todos", diz meu filho adolescente.

Francamente, hoje em dia, minha primeira reação é a curiosidade. O que se passa, exatamente, com estes leitores? Como é possível que algo inanimado, produzido em massa e transformado em commodity, como um celular, pode irritá-los tanto?

Tomemos como exemplo o leitor cuja mensagem citei acima. Quando ele escreveu a mensagem, o celular não tinha nem mesmo sido lançado. Não havia como ele ter testado o aparelho. Portanto, seria impossível para ele avaliar se o aparelho seria de fato "um verdadeiro desastre em termos de hardware, sem personalidade nem coração". Então, o que poderia tê-lo levado a escrever com tanta confiança a respeito do celular?

Nos anos 80 e 90, as guerras religiosas no mercado de eletrônicos eram mais fáceis de compreender. Naquela época havia dois lados: Apple e Microsoft. Os defensores da Apple detestavam a Microsoft porque (de acordo com o raciocínio deles) a empresa tinha se tornado grande e bem sucedida não por causa de seus produtos de qualidade, e sim por roubar ideias e executá-las de maneira desajeitada. Os defensores da Microsoft detestavam a Apple porque (de acordo com o raciocínio deles) seus consumidores e produtos eram metidos, elitistas e caros demais.

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Havia também a questão da zebra, do azarão, uma dinâmica Davi-versus-Golias. Era divertido torcer por um lado ou pelo outro. A hostilidade contra Microsoft e Apple não diminuiu. (No lançamento de um produto na semana passada, sentei-me ao lado do colega Walt Mossberg, que escreve sobre tecnologia para o Wall Street Journal.

Rimos ao comentar as mensagens de ódio que recebemos; na verdade, Walt identificou algo que ele chama de Doutrina da Adulação Insuficiente. Trata-se de quando publicamos uma resenha extremamente elogiosa a respeito de um produto da Apple - mas recebemos mesmo assim mensagens furiosas dos fãs da Apple porque, na opinião deles, nossos elogios não teriam sido suficientes.)

Mas, com o passar do tempo, novas religiões ascenderam: Google. Facebook. Nos fóruns de debate a respeito da fotografia, batalhas semelhantes consomem os defensores de Canon e Nikon. Há até guerras religiosas nos e-books: Kindle vs. Nook.

E agora: Samsung.

Samsung? Bem-vinda à primeira divisão.

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O que está havendo, afinal? Por que uma pessoa dedicaria o tempo do seu dia para verter uma torrente de veneno contra o responsável pela análise de um celular?

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Na política, os cientistas descrevem uma teoria da comunicação chamada de efeito hostil da mídia. Trata-se de quando temos a impressão de a cobertura da mídia a respeito de um tema importante ser enviesada e contrária à nossa opinião, independentemente do quanto a cobertura seja equilibrada e imparcial.

Mas, no universo dos eletrônicos, este efeito é ampliado pela poderosa força motivadora do medo.

Quando compramos um produto, estamos de certa maneira fazendo uma escolha que traz prós e contras. Nós nos vinculamos a uma marca. Muitas vezes, assumimos o compromisso de investir milhares de dólares em software para a plataforma escolhida, ou nas lentes para aquela câmera, ou nos e-books para aquele leitor de livros em formato eletrônico. É grande e profundo o interesse que temos em ter feito a escolha certa. Sempre que aparece alguém e diz, num texto impresso, que pode haver uma opção melhor - bem, trata-se de algo assustador.

Neste caso, tem-se a sensação de que o resenhista não está apenas criticando seu novo aparelho. Ele está criticando o dono do aparelho. Ele está insultando sua inteligência, pois não foi este o produto que você escolheu. Ele está dizendo que você fez a escolha errada, e aqueles milhares de dólares em aplicativos e lentes e e-books não passaram de dinheiro rasgado. Ele está dizendo que o consumidor é um tonto.

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No universo dos dispositivos, o efeito é amplificado pelas aparências sociais. Devemos provavelmente agradecer à Apple por transformar os eletrônicos num acessório da moda: você é aquilo que leva consigo.

O Zune, da Microsoft, por exemplo, era um belo reprodutor de MP3, de excelente design. Assim sendo, por que o produto fracassou? Porque ter um dispositivo daqueles era considerado extremamente fora de moda. O iPod estava na moda. As silhuetas dançantes nos anúncios do iPod eram bacanas. Você não gostaria que os outros o considerassem uma pessoa patética, não é?

Mais uma vez, uma resenha que critique o dispositivo que você comprou acaba insultando a pessoa do comprador. Não está dizendo apenas, "você fez a escolha errada"; agora, diz também, "e você tem um péssimo gosto".

Está bem. Mas, por que os eletrônicos? Por que não vemos guerras de insultos entre os defensores de diferentes marcas de cereal matinal, de firmas de locação de carros ou de empresas seguradoras?

Sem dúvida, parte da resposta está no fato de estes produtos não terem sido transformados no objeto de resenhas padronizadas, como ocorreu com os livros, peças de teatro, filmes, restaurantes e produtos tecnológicos. Não há no Times uma coluna semanal analisando os cereais matinais. (Ei, editores! Estão prestando atenção?)

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Mas, no ramo dos eletrônicos, a internet é sem dúvida um fator importante. Os produtos tecnológicos são o objeto de guerras religiosas porque a própria internet é um fórum de debate técnico. E seu anonimato encoraja as pessoas a manifestarem suas frustrações de uma maneira que jamais seria aceitável nem tolerável numa conversa cara a cara.

Eu adoraria sugerir que fôssemos todos mais civilizados nas nossas interações. Adoraria propor que os leitores escrevessem suas objeções de maneira menos virulenta. Seria ótimo se as pessoas pudessem aprender que são indivíduos dignos independentemente dos modelos de aparelhos eletrônicos que possuam.

Mas isto seria como dizer, "Devemos fazer mais exercício" ou "Os países deveriam manter boas relações entre si". Há coisas que são da natureza humana, demasiadamente arraigadas para que possam ser mudadas.

Aparentemente, a sensibilidade associada aos dispositivos eletrônicos é uma delas.

* Publicado originalmente em 21/6/2012.

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