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A internet no banco dos réus

Autoridades públicas devem ter um "direito ao esquecimento"?

Por Thiago Oliva e Francisco Brito Cruz

Por Francisco Brito Cruz
Atualização:

Como seria um mundo em que encontrar informações na internet sobre pessoas de perfil público - juízes, ministros, promotores, políticos, celebridades, apenas para mencionar algumas categorias - fosse cada vez mais difícil? Essa situação parece um pouco absurda em tempos de crescente democratização do acesso à informação por meios digitais, mas pode tornar-se realidade em um futuro não muito distante no Brasil. Um "direito ao esquecimento" voltou a ser invocado como fundamento para a desindexação de resultados de pesquisa realizada por meio de buscadores na internet em ação em curso no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

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Denise Pieri Nunes, atualmente promotora de justiça no Rio de Janeiro, ajuizou demanda judicial contra Google, Yahoo e Microsoft em 2009 questionando a existência de resultados de buscas na internet envolvendo seu nome relacionadas a reportagens sobre suspeitas de fraude do XLI Concurso da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Na época, Denise foi reprovada no concurso. O Conselho Nacional de Justiça, ao analisar o caso, entendeu que não havia elementos suficientes para confirmar a fraude, mas reconheceu problemas em práticas adotadas pela organização do concurso, emitindo recomendações para os exames subsequentes.

A informação foi divulgada em uma série de sites como Conjur, Folha, dentre outros, apontando que Denise teria tido acesso a um dos gabaritos da prova com antecedência. Diante dessa acusação, ela alegou que a indexação dos resultados relacionados ao conteúdo estaria causando abalos à sua honra e pediu a filtragem dos resultados de busca por seu nome, desvinculando-a de quaisquer reportagens relacionadas aos fatos.

O caso chegou ao STJ no ano passado depois de o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro condenar os buscadores a instalarem filtros de conteúdo que desvinculassem o nome da autora das notícias sobre a suposta fraude, sob pena de multa diária, invocando genericamente um "direito ao esquecimento".

O "direito ao esquecimento", reconhecido no âmbito do caso Costeja vs. Google Espanha julgado em 2014 pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, foi definido, no contexto europeu, como um direito à desindexação em face de ferramentas de busca sempre que os direitos individuais à privacidade e à proteção de dados forem preponderantes em relação ao interesse público de acesso à informação.

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 Foto: Estadão

No Brasil, muito embora tenhamos decisões aqui e ali reconhecendo um "direito ao esquecimento" - pautadas, sobretudo, no direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem (art. 5º, X da Constituição) - não há entendimento consolidado nesse sentido. Ao contrário, em mais de uma oportunidade a Terceira Turma do STJ já decidiu que os buscadores "não podem ser obrigados a eliminar do seu sistema os resultados derivados da busca de determinado termo ou expressão".

O julgamento do caso no STJ teve início em agosto de 2017 e dividiu os ministros, que começaram a divergir sobre qual deveria ser o argumento acolhido. Após o voto da Ministra Nancy Andrighi na linha da jurisprudência já consolidada do tribunal, o Ministro Marco Aurélio Bellizze abriu dissidência, defendendo que o caso seria excepcional e que não seria razoável que, passados mais de dez anos, a pesquisa pelo nome de Denise ainda resultasse em links relativos à suposta fraude - inclusive por ela não ter sido comprovada à época. O Ministro Paulo de Moura Ribeiro acompanhou o posicionamento do Ministro Bellizze e, em seguida, o Ministro Ricardo Cueva acompanhou a Ministra Nancy Andrighi. O placar está em 2 a 2 a ser desempatado no voto do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino.

E qual seria o problema de o STJ rever o seu posicionamento quanto à existência de um "direito à desindexação" nesse caso?

Os links a serem desindexados dos resultados de busca pelo nome de Denise dizem respeito a informações sobre o desfecho de um concurso público, por definição um procedimento elaborado com a finalidade de selecionar as pessoas mais aptas a exercerem determinado cargo público e, portanto, permeado pelo interesse de todos nós. Não é à toa que os concursos devem contar com regras bem definidas, ampla fiscalização e transparência: qualquer suspeita de fraude pode resultar, além da responsabilização dos envolvidos nas esferas cível e penal, na completa anulação dos exames eventualmente aplicados. Justamente por isso, qualquer informação nesse sentido deve estar amplamente acessível a todos interessados, inclusive por meio dos mecanismos de busca, principal instrumento de pesquisa na internet. Em um universo de bilhões de sites, o trabalho dos buscadores tornou-se essencial para quem deseja localizar determinada informação no ambiente digital.

Outro aspecto a ser levado em conta é que Denise, muito embora não tenha sido aprovada no polêmico concurso da magistratura, é hoje promotora de justiça e, portanto, uma autoridade, exercendo função pública de grande importância e prestígio no cenário nacional. Pessoas com esse perfil devem estar naturalmente mais suscetíveis ao escrutínio público, de modo que informações sobre a sua trajetória - como a participação em um concurso público, por exemplo - devem permanecer acessíveis. A desindexação, nesse caso, afetaria o direito de acesso à informação do público em geral. Nesse sentido, a própria decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia que declarou a existência de um "direito ao esquecimento" reconheceu que o perfil público da pessoa que pleiteia a desindexação deve pesar contra sua pretensão.

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No caso de Denise, reconhecer de maneira excepcional seu "direito ao esquecimento" implicaria abrir uma brecha para que outros funcionários públicos - e quem sabe até outras pessoas com perfil público, como políticos e celebridades - passem a demandar o Judiciário em busca do "esquecimento" em relação a fatos que possam contrariar a imagem que desejam manter no espaço público. Desejamos mesmo conceder mais esse privilégio às autoridades?

 

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Thiago Oliva é coordenador da área de liberdade de expressão do InternetLab. Francisco Brito Cruz é diretor do InternetLab.

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