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A internet no banco dos réus

Era uma piada, deputado

Por Dennys Antonialli, Francisco Brito Cruz e Mariana Giorgetti Valente

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Por Francisco Brito Cruz
Atualização:

"Senador do PMDB que não teve prisão pedida perde prestígio entre os colegas". Você já deve ter lido manchetes "fictícias" como essa feitas pelo Sensacionalista, Piauí Herald e Olé do Brasil, sites de "notícias" fictícias que brincam com lugares comuns, clichês e situações normalmente já entendidas como absurdas do noticiário real. Eles sequestram um pouco do espaço das notícias "sérias" que povoam nossos feeds, lembrando-nos muitas vezes de que "o rei está nu".

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Páginas humorísticas como essas fazem parte de um processo mais amplo. Nos últimos anos, a instabilidade política do país e a massificação do uso das mídias sociais produziu redes sociais fervilhantes (e hilárias). A cada escândalo surgem dezenas de novos memes, a cada ministro demitido, vários novos gifs, a cada fase da Operação Lava-Jato, novas formas de crônica política. A crítica política com temperos humorísticos nunca foi tão disseminada - e tão ácida.

Um político que não gostou nada de como foi retratado por um site de notícias fictícias foi o polêmico deputado Marco Feliciano (PSC-SP). O político se disse ofendido pela notícia "Marco Feliciano cancela a remessa de Xampu comprados em Miami" (publicada logo após decisão da Suprema Corte dos EUA a favor do casamento gay), e acionou o Judiciário contra o UOL, provedor que realiza a hospedagem do site Sensacionalista. Pediu que a Justiça ordenasse a remoção da "notícia" em caráter liminar, e que determinasse ao provedor a entrega dos dados que pudessem identificar o autor do texto.

 Foto: Estadão

O UOL, por sua vez, argumentou que somente fornecia hospedagem ao site, e que não tinha condições de retirar apenas a página referida (conseguiria apenas indisponibilizar o site Sensacionalista como um todo). De acordo com o UOL, um provedor de hospedagem seria apenas o responsável pela "locação" de uma página, como o Sensacionalista (o verdadeiro provedor do conteúdo), um espaço em um servidor, o que permite que a página fique online. O argumento seria de que o pedido feito por Feliciano extrapolaria os limites técnicos da atividade desse tipo de provedor "de hospedagem", fazendo com que o UOL respondesse por um conteúdo que não produziu. O UOL usou ainda o mesmo argumento - dos limites técnicos - em relação aos dados de identificação do autor da postagem, alegando que não teria como fornecê-los.

O caso foi decidido pela magistrada da 7ª Vara Cível de Brasília no último mês. A juíza determinou que o UOL fornecesse os registros que permitissem identificar o autor da publicação, mas afirmou que retirar o conteúdo seria censura. Curioso é que tal afirmação foi feita pela magistrada, na decisão, logo após ela constatar que Feliciano havia pedido a remoção da notícia apenas em caráter liminar (ou seja, provisoriamente e sem ouvir a outra parte), e não definitivamente (ou seja, num processo principal). O que ficou no ar foi se o deputado não estava preocupado em remover da Internet um conteúdo que julgou "abalá-lo moralmente e torturá-lo" (como relatado por ele) ao final do processo.

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A sentença determinou, portanto, que a produção de conteúdos humorísticos de crítica a políticos está protegida pela liberdade de expressão, mas observa que a Constituição Federal vedaria o anonimato, o que justificaria a entrega dos dados de identificação. Como já comentamos, a proibição da Constituição não gera necessariamente um direito de saber quem é que está do outro lado, por trás da tela.

No caso do Sensacionalista em específico, é de se questionar se seus redatores estariam mesmo tentando se valer do anonimato para fazer suas críticas. É difícil crer que produtores de conteúdo humorístico consolidados como os responsáveis pela página sustentem seu negócio na ideia de não responder pelo que publicam. Mas existem muitos casos em que páginas como essa podem se beneficiar da Internet para fazer críticas, denúncias e reflexões, de forma humorística ou não. Ao mesmo tempo que pode servir como ferramenta para mascarar o autor, a Internet também empodera e dá voz aos cidadãos.

Vale lembrar que raramente os conteúdos são postados na Internet de forma completamente anônima. Na grande maioria das vezes, essas publicações deixam rastros que permitem identificar o autor, mas a obtenção desses dados depende de uma ordem judicial, que deve avaliar, justamente, se há razões que justifiquem a exposição do autor. E deve haver rigor. Ao proibir o anonimato, a Constituição não exige que todos sejam sempre identificados: o pseudonimato (manifestar-se com nomes fictícios) é admitido. E isso protege a liberdade de expressão: este blog inclusive discutiu recentemente o que autoridades públicas podem fazer quando entendem que um jornalista "desabona" seu trabalho.

Em relação ao pedido de retirada do conteúdo direcionado diretamente ao provedor de hospedagem, a argumentação gira em torno dos "limites técnicos" do serviço. Como locador do espaço onde está hospedado o conteúdo, o UOL poderia simplesmente desabilitar o acesso a endereços de conteúdos específicos? Se sim, quais as implicações de envolver o provedor de hospedagem em pedidos que envolvem conteúdos postados na Internet?

O Marco Civil da Internet não menciona provedores de hospedagem especificamente; diferencia apenas provedores de conexão à Internet (operadoras de telecomunicações) e provedores de aplicações de Internet (empresas que oferecem seus serviços aos conectados na rede). Ficam então abertas questões a respeito dos limites de responsabilidade de cada um dos diferentes serviços oferecidos na rede por "provedores" que não estejam necessariamente discriminados na lei. A hospedagem parece distante de um serviço de rede social ou de mensagens, por exemplo. E é preciso lembrar que incluir os provedores de hospedagem no processo de retirada de conteúdos significa, muitas vezes, tomar decisões a respeito do que fica e do que sai da Internet sem ouvir o outro lado, o autor das postagens, o que pode ser importante para a liberdade de expressão. Casos como este são uma oportunidade de o Judiciário ampliar e refinar seu entendimento sobre diferentes serviços e atividades, minorando assimetrias e prevenindo responsabilizações indevidas.

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Essa sentença é mais um capítulo da história dos novos jeitos de contar sobre a política no Brasil - e quais os seus limites. Em 2015, o procurador da Câmara dos Deputados defendeu, com a benção do então presidente da casa, um projeto de lei que penalizava quem criasse perfis fake na Internet, o que teria impacto direto em quem mantivesse páginas que satirizassem o trabalho de figuras públicas.

Qual a dimensão da proteção do direito à livre manifestação do pensamento de uma sociedade quando não se têm liberdade para fazer piada com os governantes? Parece ser fundamental que a compreensão de tal direito acompanhe (e proteja) as novas formas de rir. É o jeito para que não nos enganemos quando percebermos que o rei está nu.

 

Acesse a sentença da juíza da 7ª Vara Cível de Brasília aqui.

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