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A internet no banco dos réus

"Tudo Sobre Todos": sem lugar para se esconder

Por Dennys Antonialli, Francisco Brito Cruz e Mariana Giorgetti Valente

Por Mariana Valente
Atualização:

Nas últimas semanas, você deve ter ouvido falar da polêmica envolvendo o "Tudo sobre todos", site que promete (e entrega) dados sobre qualquer pessoa no Brasil. Algumas funcionalidades de busca eram gratuitas, e já eram assustadoras: CPF, endereço residencial e data de nascimento. Outras eram prometidas mediante pagamento: empresas abertas e qualificação pessoal completa. O curioso é que muitas das informações ali disponíveis são dados pessoais, que possivelmente só foram obtidos com acesso a bancos de dados de órgãos públicos.

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Se você procurou seu nome, a sensação com certeza foi no mínimo estranha. Ver que qualquer um poderia saber tanto sobre você, ver nomes de vizinhos que, se você mora em uma cidade grande, talvez você nem conheça. Em um caso, um conhecido buscou pelo nome de seu filho bebê, e o site já retornava seu endereço.

O "Tudo sobre todos" tem seu domínio registrado na Suécia (por isso o ".se" no endereço), mas é controlado, segundo o próprio site, pela empresa Top Documents LLC, sediada nas Seychelles (um país formado por algumas ilhas no Oceano Índico). Por meio de seu site, a empresa alega que todos os dados coletados são de acesso público. Suas fontes seriam "cartórios, decisões judiciais publicadas, diários oficiais, foros, bureaus de informação, redes sociais e consultas em sites públicos na internet". A Top Documents garante que as pesquisas são sigilosas e que "o serviço prestado e a informação apresentada no website sempre respeitam a legislação".

Não é a opinião do Ministério Público Federal (MPF). No Rio Grande do Norte, o procurador da República Kléber Martins ingressou com uma ação na Justiça Federal para bloquear o acesso ao site. Em linhas gerais, o MPF argumentou que o site exercia atividade contrária à legislação brasileira: "a divulgação de informações estritamente pessoais, sem prévia consulta e consentimento de seus titulares, contraria as cláusulas constitucionais da inviolabilidade da intimidade, da vida privada e dos dados das pessoas". Como o "Tudo sobre todos" não está sediado no Brasil e, portanto, não consegue ser diretamente constrangido a sair do ar por uma ordem judicial brasileira, o procurador pediu que o bloqueio ocorresse por intermédio das empresas provedoras de conexão de Internet. A ideia é simples: bloquear o acesso ao site através da infraestrutura da Internet, e não pelo fechamento ou suspensão das atividades da empresa diretamente.

O juiz da 1ª Vara Federal do Rio Grande do Norte concordou com o MPF, acolhendo todos os pedidos realizados. Em decisão liminar, afirmou-se que o "Tudo sobre todos" viola a lei do Cadastro Positivo (Lei n. 12.414/2011), o Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014) e, ainda, o direito constitucional à intimidade e à vida privada (inciso X, art. 5º da Constituição).

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A decisão de ter dirigido sua ordem de bloqueio às empresas provedoras de conexão à Internet ao invés de tentar obrigar o próprio site a sair do ar não é algo inédito. Como já discutimos no caso envolvendo o WhatsApp, essa é uma das alternativas do Judiciário para os casos em que as empresas responsáveis pelo site ou pelo aplicativo não estejam sediadas no Brasil. Foi talvez antecipando essas dificuldades para fazer valer uma ordem judicial brasileira fora do país que a empresa decidiu não ter representação aqui. Mas por mais que seja relativamente eficaz, a medida do Judiciário precisa ser usada com parcimônia na medida em que interfere significativamente na liberdade de acesso que o usuário tem. Imagine se o acesso a quaisquer sites considerados "indecorosos" ou "inapropriados" começar a ser bloqueado por decisões judiciais.

Para além dessa discussão, ficam perguntas sobre o modelo de negócios da empresa e a privacidade dos cidadãos. Ainda que alguns dos dados divulgados estejam armazenados em repositórios de acesso público, como alega o "Tudo sobre todos", isso não significa dizer que possam ser livremente agregados e acessados de forma irrestrita. Pense no seu número do título de eleitor, por exemplo. É possível obter o número pela Internet, mas para isso você precisa fornecer outros dados seus (e ainda digitar algumas letrinhas para provar que você não é um robô!). Esses obstáculos foram colocados justamente para impedir que empresas como a dona do site "Tudo sobre todos" se apropriem desses dados de forma automatizada. O mesmo vale para a tarefa de agregar todos esses dados em uma plataforma única. Uma coisa é conseguir vencer esses obstáculos e descobrir o número do título de eleitor de alguém, outra bem diferente é criar uma plataforma de acesso simultâneo a "tudo sobre todos", literalmente.

A empresa ainda alega que não viola a legislação brasileira. Seu argumento provavelmente está baseado no atraso do Brasil em aprovar uma lei de proteção de dados pessoais. Recentemente, esteve em consulta pública um anteprojeto de lei elaborado pelo Ministério da Justiça para regulamentar essas questões. Mais de cem países no mundo já possuem legislações específicas estabelecendo regras claras para a coleta e tratamento de dados pessoais. Em muitas dessas legislações, o modelo de negócios do site "Tudo sobre todos" estaria proibido.

Embora a nossa Constituição Federal e o Marco Civil da Internet tutelem a privacidade, isso é feito de forma genérica, abrindo caminho para esses tipos de prática. Até que uma lei como essa entre em vigor, continuaremos dependendo do bom senso do Judiciário para coibir violações e abusos. Recentemente, comentamos decisão do TJRS que não encarou como ilícita a venda de dados pessoais como endereço, CPF e telefone sem autorização do cidadão, por não se tratar de "dados sensíveis". Ao mesmo tempo que expõe os brasileiros ao escrutínio público, podendo colocar em risco sua própria integridade física, talvez o "Tudo sobre todos" ajude os brasileiros - especialmente os juízes e parlamentares - a perceber que privacidade não é importante só para quem tem algo a esconder.

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