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A internet no banco dos réus

Uma ofensa tem gênero?

Por Natália Neris e Mariana Valente

Por Mariana Giorgetti Valente
Atualização:

O direito à honra é previsto na Constituição Federal, e vem sendo o centro de muitas disputas sobre expressão (e seus limites) na Internet. De casos envolvendo autoridades querendo controlar danos à sua imagem à disseminação não consentida de imagens íntimas (que hoje é punida como crime de injúria e/ou difamação) [1], em nome da proteção à honra, o Judiciário vem determinando a remoção das plataformas de Internet de determinados conteúdos considerados ofensivos, o pagamento de indenização por danos morais e materiais, e mesmo a aplicação de medidas penais.

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Nos casos de violência contra mulheres na forma de exposição de intimidade (a violência conhecida pelo problemático termo "revenge porn"), já discutimos como é prejudicial que a questão seja tratada como violação da honra (os crimes de injúria e difamação, ou ainda a mensuração dos danos com base nesse critério). Em primeiro lugar porque, na esfera penal, isso implica dificuldades processuais; em segundo, porque vincular o exercício da sexualidade à reputação tem um caráter conservador, que acaba refletido nas decisões judiciais.

Mas há uma outra mobilização do direito à honra que vem se expressando recorrentemente no debate sobre violência de gênero e seu enfrentamento: os processos judiciais contra a vocalização dos casos de violência. Foi o que se verificou em uma decisão de janeiro da 1a Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo [2]: no caso, uma mulher havia enviado uma mensagem à atual parceira de seu ex-companheiro, com a finalidade, segundo afirmou no curso do processo, de alertá-la sobre agressões sofridas em seu relacionamento, e informar que o rapaz teria o hábito de usar as redes sociais para se aproximar de mulheres para abusar delas financeiramente.

Um dia vc mesmo descobrir quem ele é... Tive 2 costelas quebradas e braço quebrado, tbm por ele...ela não vale nada...ele trouxe a ex esposa dele do Paraná para morar com ele com 3 filhos dela e humilhou muito ela, botou pra fora e bateu muito nela...ele tá aqui em enchendo. E disse que não vai me pagar. Montou a casa toda nas minhas costas comprou com meu cartão de crédito e não quer pagar...Cuidado com esse marginal. Vou orar por ele...  

Na decisão do TJ-SP, foi mantida a decisão do juiz de primeira instância, que determinou que a ré pagasse indenização de R$ 4.000,00 ao ex-companheiro. Ficou entendido que ela não havia apresentado, nos autos, provas de que havia sofrido a violência alegada, como um boletim de ocorrência ou um prontuário hospitalar. De acordo com a decisão, a mensagem extrapolou a razoabilidade e caracterizou abuso de seu direito de livre expressão.

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 Foto: Estadão

 

Não é possível, pela ausência de mais informações, nem nossa intenção discutir a veracidade da alegação da ré. O caso chama atenção, no entanto, para dois aspectos importantes do ponto de vista de situações que envolvem violência de gênero.

O primeiro deles diz respeito à produção de provas sobre violência contra a mulher e a insensibilidade do Judiciário para questões de gênero. Frequentemente, provas dessa natureza são difíceis de ser produzidas; em outras hipóteses, ainda que a violência deixe marcas (como provavelmente seria o caso), há boas razões para a mulher preferir não buscar o sistema de justiça, que a revitimiza [3]. No caso, não havia provas da violência, e o direito não exige que se prove também que não houve violência. Faz sentido em um processo judicial: quem acusa deve provar os fatos da acusação, ou então teríamos graves problemas para vários princípios que sustentam as sociedades democráticas. Mas será que, aqui, já que (i) nem a violência nem sua ausência foram comprovadas, (ii) não se tratava de uma acusação judicial, e tampouco de um processo sobre calúnia (que é o crime de acusar alguém publicamente de outro crime), mas de uma comunicação de uma mulher a outra, e, ainda, (iii) dados os graves problemas envolvendo denúncia e provas de violência contra a mulher, na dúvida, o juiz não poderia ter considerado que não havia dever de indenizar? Parece que essa seria uma decisão sensível às questões de gênero, algo que vemos muito pouco no Judiciário. No acórdão em questão, o desembargador relator traz precedentes para apoiar sua decisão, e nenhum deles diz respeito a casos semelhantes: são casos genéricos sobre ofensas veiculadas na Internet. Isso mostra que esse caso tão delicado foi tratado como se não tivesse qualquer particularidade. É a isso que damos o nome de cegueira de gênero.

O segundo tem a ver com os riscos envolvidos em práticas de exposição de casos de violência como uma forma de proteção de si e de outras mulheres nas redes sociais, práticas essas que vêm sendo recorrentes, e costumam ser justificadas por suas defensoras tanto pela dificuldade de denúncia desses casos, quanto por seu potencial de formação de redes de apoio e enfrentamento. É complexo e não seríamos capazes aqui de fazer um julgamento da estratégia, ainda mais porque os casos são muito diferentes entre si. O que a decisão suscita certamente é a discussão ainda pouco feita das consequências jurídicas possíveis, e de como a balança pende contra a mulher. No caso em questão, a violência sequer havia sido publicizada, de forma a lesar a reputação do ex-companheiro diante de um público ampliado. Ainda assim, a indenização que ela teve de pagar foi bastante alta.

É evidente que, em abstrato, devemos afirmar: o melhor lugar para resolver problemas de violência de gênero é o Judiciário. Em concreto, temos um sistema que revitimiza mulheres do começo (lavratura do B.O.) ao fim (procedimentos judiciais e, frequentemente, decisões). Grupos de mulheres pleiteiam há décadas o deslocamento das discussões do âmbito privado ("em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher") para o público (fazer de questões entendidas como "domésticas" serem compreendidas como políticas e pertinentes à esfera pública); usar a Internet para esses fins é algo novo, mas envolve riscos.

Natália Neris é coordenadora da área desigualdades e identidades do InternetLab.

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Mariana Valente é diretora do InternetLab.

 

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[1] Sobre o tema, publicamos um livro, disponível online, chamado O Corpo é o Código: estratégias jurídicas de enfrentamento ao revenge porn na Internet. http://www.internetlab.org.br/pt/desigualdades-e-identidades/internetlab-lanca-livro-o-corpo-e-o-codigo/.

[2] Decisão: http://www.internetlab.org.br/wp-content/uploads/2018/02/Ac%C3%B3rd%C3%A3o-TJSP-1000645-93.2015.8.26.0224.pdf.

[3] Sobre a crença e descrença na palavra da vítima especificamente no caso de estupro, ou ainda sobre revitimização pela Justiça nesses casos, é esclarecedora a tese de doutorado de Daniella Coulouris: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-20092010-155706/pt-br.php.

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