Foto do(a) blog

A internet no banco dos réus

Você tem o direito de manter o seu celular calado?

Por Dennys Antonialli, Francisco Brito Cruz e Mariana Giorgetti Valente

PUBLICIDADE

Por Francisco Brito Cruz
Atualização:

Há alguns meses atrás, Clarice Falcão e Fabio Porchat protagonizaram, no canal Porta dos Fundos, episódio que retrata o pânico de um namorado ao ver que a sua namorada está com o seu celular, destravado, na mão. Além do aparelho, é como se ela também o tivesse na mão. Desesperado, o personagem faz de tudo para impedir que ela vasculhe por suas mensagens e aplicativos.

PUBLICIDADE

O drama não é exagerado. Especialmente a partir da chegada dos smartphones, os celulares passaram a abrigar muitas informações sobre nossas vidas: fotos, mensagens, contatos, agenda, nossos percursos (por conter dispositivos de geolocalização) e, muitas vezes, todas as nossas atividades nos nossos aplicativos preferidos.

Foi por essa razão que a Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso Riley v. California, decidiu no ano passado, por unamidade de seus nove ministros, que a polícia precisa de uma ordem judicial específica para vasculhar o celular de pessoas detidas. Isso porque a polícia estava se valendo da sua prerrogativa de revista de objetos pessoais, como bolsas, carteiras e mochilas, para acessar também todas as informações contidas dentro do celular das pessoas, que, mais tarde, poderiam servir de prova durante os processos criminais.

Essa mesma discussão foi enfrentada por um juiz da 4a Vara Federal Criminal de São Paulo, em um caso envolvendo um suspeito de ter roubado uma agência dos Correios. Dentre os objetos que foram levados, estava um rádio que podia ser rastreado, o que permitiu que a polícia realizasse a prisão do suspeito.

Tendo confiscado o celular do acusado, a polícia usou as fotos do aparelho para mostrá-las para funcionários dos Correios para fins de identificação. O juiz considerou que a polícia não poderia ter acessado o conteúdo armazenado na memória do celular do acusado sem uma ordem judicial específica. Isso porque, para ele, "a localização de fotos, vídeos etc. em celulares pode ser considerada uma espécie de busca digital ou virtual, comparável à busca de arquivos em computadores pessoais que, conforme é cediço, depende de prévia autorização judicial".

Publicidade

A discussão sobre a diminuição das barreiras e crivos para que o Estado (polícias, Ministério Público e outras autoridades) tenha acesso a dados e comunicações dos cidadãos não está só na ordem do dia do Judiciário. No Legislativo, têm surgido frequentemente propostas para retirar a necessidade de mandado judicial para a obtenção de tais dados.

O caso mais recente é o do Projeto de Lei n. 215/2015, que vem sendo discutido na Câmara dos Deputados. De acordo com o texto do projeto, policiais e promotores não precisariam mais de ordem judicial para ter acesso aos registros do que fazemos na Internet - e de quando nos conectamos a ela. Esses são dados que permitem, em última instância, a identificação dos dispositivos utilizados para esta ou aquela atividade na rede. Por força da lei, especialmente do Marco Civil da Internet, tais dados já devem ser armazenados pelos provedores por um tempo determinado, mas seu acesso, inclusive aquele pretendido por autoridades investigativas, só pode se dar mediante ordem judicial.

Hoje de manhã (01/10/2015), em reunião, os parlamentares alteraram mais uma vez o texto do projeto e passaram a defender que todos os serviços que utilizamos na Internet sejam obrigados a coletar, em seus cadastros, dados que "informem qualificação pessoal, filiação, endereço completo, telefone, CPF, conta de e-mail". Isso significa dizer que essas informações teriam de ser exigidas para todos os serviços que você usar na Internet, seja criar um email, um perfil em uma rede social ou mesmo instalar um aplicativo novo. Pior: policiais, delegados, promotores e outras autoridades teriam acesso livre a esses dados, sem precisar passar pelo crivo do Poder Judiciário.

Iniciativas como as do Projeto de Lei n. 215/2015 ou práticas como a da polícia no caso do roubo da agência dos Correios passam por cima do direito à privacidade, garantido constitucionalmente, em nome do combate ao crime. É verdade que o direito à privacidade não é absoluto e que não deve servir de obstáculo para a investigação criminal, mas é fundamental que essa análise seja feita por um juiz. É ele a autoridade legal competente para garantir que não existam abusos ou distorções durante a coleta e análise das provas, ou seja, para definir até onde vai o poder de investigação do Estado.

É comum que se argumente que "quem não deve não teme", mas as coisas não são assim tão simples. Imagine o caso de um indivíduo que queira fazer denúncias a respeito da atuação de um policial, por exemplo: ele ficaria excessivamente exposto a represálias, diante da possibilidade de livre identificação, sem qualquer supervisão, que a polícia teria dele. Ou ainda: o caso em que as informações encontradas no celular de um indivíduo são tiradas de contexto, como uma foto que ele pode ter recebido de alguém, dando margem a uma incriminação infundada. As possibilidades de abuso são diversas.

Publicidade

A necessidade de intervenção judicial sobre investigações é garantida em diversos outros casos, como no de quebra de sigilo telefônico, e tem a função de prevenir esses abusos e preservar a privacidade dos cidadãos em geral. É claro que investigações precisam ser conduzidas; a forma como elas são conduzidas, no entanto, diz muito sobre a qualidade da nossa democracia.

 

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.