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Inovação e cultura maker contada por mulheres
O futuro da moda vai muito além da estética
17/11/2016 | 00h35
Por Ana Paula Lima
Limitar os wearables a acessórios ultratecnológicos e a peças que aumentam a performance individual é deixar de enxergar a moda como verdadeiro agente de mudança social.
“O futuro já chegou, só não está ainda uniformemente distribuído”. A frase, dita pelo escritor William Gibson, na virada dos anos 2000, cai como uma luva para a indústria da moda. As mudanças no processo de produção já estão por aqui, mas ainda não perfeitamente montadas em um quebra-cabeça: wearables, impressão 3D e tendências como lowsumerism dão bons indícios dos rumos da moda nos próximos anos. Para me ajudar a encaixar as peças desse jogo, pedi ajuda para a designer e empresária Mariana Marcílio.
A Mari passou por grandes marcas até ter o seu grande momento eureka em um curso sobre futurismo em 2015. Hoje, à frente do segmento de wearables da Krafty, pesquisa as possibilidades de uso de tecnologias emergentes, capta projetos e conecta profissionais em busca de soluções para a sociedade por meio da moda. Ela também administra a página Wearables Brasil no Facebook e no Instagram.
Qual é a função dos wearables?
Wearables são tecnologias vestíveis que se utilizam de sensores, tecidos inteligentes, materiais tecnológicos e métodos de fabricação especiais. Sua função é ampliar os sentidos e a experiência humana. Por exemplo, uma pessoa pode usar uma peça que se adapte à temperatura do corpo dela sob qualquer condição climática, diminuindo o desconforto com as mudanças de temperatura ao longo do dia. Trabalhadores que tenham contato com substâncias tóxicas, como aqueles que passam muito tempo em plataforma de petróleo, podem usar uma roupa que indique contato com altos níveis de gás. Os wearables podem ainda melhorar qualidade de vida, ao restabelecerem um sentido ou uma funcionalidade do corpo (isso já acontece há anos através de lentes de contato, próteses, etc) e propiciar momentos de lazer, como no caso dos óculos de realidade virtual e realidade aumentada.
Wearables são ainda uma tecnologia emergente, com peças e acessórios que podem ser grandes e pesados, nem sempre muito fáceis de usar. Por que isso acontece e como você vê o desenvolvimento dessa indústria?
As tecnologias vestíveis vão se tornar cada vez mais invisíveis e integradas ao corpo. Se hoje as empresas ainda lançam artefatos que mais parecem bugigangas retiradas de um filme de ficção científica é porque os componentes utilizados ainda não foram adaptados para a indústria de wearables. Eles ainda são apropriados de outras indústrias. Na automobilística aconteceu a mesma coisa. Conforme a fabricação de carros foi se desenvolvendo, surgiu todo um mercado de subprodutos voltado à automatização e customização dos veículos, como sensores de ré e equipamentos de som automotivos.
É comum vermos associadas a essa nova indústria peças com um visual futurista, que usam lâmpadas LED e não têm muita função. Isso também pode ser considerado uma tecnologia vestível?
As luzes estão chegando ao mercado porque chamam a atenção e se acoplam facilmente aos vestíveis. Porém grande parte dos projetos com lâmpadas é meramente ornamental, sem função utilitária necessariamente. Isso acaba direcionando o mercado e a visão das pessoas, pois elas acabam não enxergando o potencial real da união entre moda e tecnologia. Um dos meus casos favoritos é o uso de óculos de realidade virtual em hospitais. Esse acessório pode trazer bem-estar durante o tratamento, ao transportar os pacientes para ambientes virtuais como praias e outras paisagens.
E as roupas feitas em impressora 3D? Além do impacto no padrão de consumo, qual o impacto delas na indústria da moda?
A grande vantagem das roupas feitas em impressoras 3D é a possibilidade de fazer as chamadas “impressões impossíveis”. Em vez dos processos atuais, podemos imprimir uma peça única – dobrada e sem emendas -, como é o caso do Kinematics Dress, conceito desenvolvido pela pioneira Nervous System. Essa possibilidade altera toda uma cadeia de produção, na medida em que elimina etapas como o corte, a montagem e a costura do produto, além de permitir a criação de estruturas e tramas ainda mais elaboradas. O programa Marvelous Designer, por sua vez, permite que a modelagem seja feita diretamente em um corpo tridimensional, que pode ser escaneado com um celular. Além de desenhar a peça em cima desse modelo 3D, há uma função que mostra o caimento do tecido. As vantagens são inúmeras e vão desde a redução de desperdício de material até a possibilidade de customização. Isso impõe um desafio muito grande para as marcas que não contemplam a diversidade. Com a difusão do acesso à tecnologia, qualquer pessoa pode buscar conhecimento e optar por fabricar uma peça customizada, em vez de comprar algo padronizado e que nem sempre é adequado ao seu corpo. Temos aqui uma oportunidade maravilhosa de ganharmos autonomia e de questionarmos os padrões impostos pelo mercado. Modelar uma roupa a partir do nosso próprio corpo escaneado resulta em uma peça que nos valoriza e que se adapta ao nosso corpo, não o contrário.
Acredito que essas mudanças possam ter impactos em toda a cadeia produtiva, afetando outras indústrias também.
Exato. Isso provavelmente afetará outros mercados, como o editorial e de e-commerce. As fotos de produto poderão ser feitas a partir dos modelamentos 3D, que permitem uma simulação muito precisa dos produtos. A Neuro é uma marca que já usa 3D em suas campanhas.
Qualquer pessoa, mesmo sem formação acadêmica, pode produzir peças dessa forma?
De certa forma, sim. Hoje existe muita informação online e várias plataformas com conteúdo aberto. Qualquer pessoa pode buscar o conhecimento básico para criar e produzir as próprias roupas. Há muitos tutoriais e cursos gratuitos disponíveis. Isso é muito interessante porque gera uma formação multidisciplinar, podendo ser voltada para a execução de projetos específicos. Com a internet, há também a possibilidade de ir atrás de pessoas que tenham o conhecimento que falta para cada projeto (makerspaces e fablabs são ótimos lugares para encontrá-las). Isso estimula a criação de conexões e processos de cocriação.
É interessante isso que você fala, sobre os processos de cocriação. A tecnologia não é um campo a parte, mas está presente e cada vez mais integrada em tudo: na moda, na medicina, na indústria de alimentos, etc. Como outras áreas podem contribuir para essa união entre moda e tecnologia?
A multidisciplinaridade é uma das principais vantagens, pois expande muito as possibilidades de resolução de problemas e desenvolvimento de novos projetos. A Krafty é o nosso laboratório de experimentação do futuro, e lá nós temos dois engenheiros, um programador, dois administradores e uma designer. Essa diversidade acaba trazendo muita riqueza de perspectivas. Além desse time, buscamos manter uma rede de contatos que se conecta a nós sob demanda de projetos. O positivo desse cenário é que, para trabalhar com wearables, você não precisa necessariamente ter uma formação ou um vínculo com moda ou tecnologia. Por exemplo, um biólogo pode contribuir com modelos de biomimética para trazer uma solução de tramas e estruturas para um uniforme de um bombeiro. Ou um profissional da área de saúde pode enxergar uma dificuldade para desenvolver um produto específico para a sua área. O pensamento aqui é integrar e colaborar, para conseguirmos produtos cada vez melhores e mais inteligentes.
Qual o futuro do trabalho na moda?
A indústria da moda hoje está em transição para o digital. Isso vai chacoalhar o mercado, porque vai mudar muito a maneira como criamos, produzimos e consumimos. Os profissionais dessa área vão ter que se conscientizar dos impactos da indústria e entender que novos caminhos são necessários e inevitáveis. Muitas funções serão automatizadas e, em contrapartida, outras tantas serão criadas. Apesar dessas mudanças parecerem assustadoras, trata-se de um novo momento no qual as empresas e os profissionais precisarão estar abertos a inovações e em que os processos serão muito mais horizontais, responsáveis e transparentes. Nesse mundo dinâmico, resiliência é muito importante: os profissionais deverão se atualizar sempre, aprender a se reinventarem e serem cada vez mais humanos para buscarem produtos e soluções que impactem positivamente toda a sociedade.
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