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A corrida dos superapps e a revolução do pagamento digital no Brasil

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Por Felipe Matos
Atualização:

Na esteira do movimento chinês, aplicativos de delivery, e-commerce, mobilidade, comunicação, bancos e fintechs disputam o status de super aplicativo, capaz de realizar inúmeras atividades e realizar pagamentos. Nova regulação do BACEN deve impulsionar o modelo.

Imagem: Unsplash  

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Já não é novidade que aplicativos para smartphone mudaram a forma como realizamos diversas tarefas cotidianas. Hoje em dia, quase não se pede comida pelo telefone e nem é mais preciso esticar o braço na rua para pedir um táxi. Pagar boletos, então, virou tarefa bem mais simples com o uso da câmera do smartphone para ler o código de barras, sem precisar digitar um monte de números no internet banking, nem ter que se deslocar até um caixa eletrônico ou guichê de pagamento.

 

Atualmente, o Brasil conta com mais smartphones do que habitantes, somando mais de 230 milhões de aparelhos ativos, segundo a FGV. Para muitas pessoas, ele é o principal ou único meio de acesso à internet. A chamada economia dos aplicativos já é tão relevante para o país que apenas os aplicativos de delivery e transporte são fonte de renda para cerca de 4 milhões de trabalhadores autônomos, o que seria equivalente ao maior "empregador" do Brasil.

 

A inspiração que vem da China

 

O que esperar do futuro da 'Economia dos Aplicativos' no Brasil? Bom, é possível ter uma boa ideia do que vem por aí observando o movimento que aconteceu na China. Por lá, praticamente todas as transações da vida cotidiana passam por apps. Não estou exagerando, o pagamento por aplicativos chineses praticamente acabou com a circulação de dinheiro em papel moeda no país. De ir à feira a fazer supermercado, de reservar uma consulta ao médico a comprar a ração do cachorro, tudo acontece pelo Wechat (ou Tenpay, da Tencent) ou Alipay (da Alibaba). Para se ter uma ideia, os dois aplicativos tinham somados mais de 1 bilhão de usuários ativos, movimentando o equivalente a U$ 7 trilhões apenas no último trimestre de 2018, segundo a Ipsos.

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Tudo começou com o uso frequente de aplicativos cotidianos. O Wechat era a principal ferramenta de comunicação dos chineses - como o WhatsApp no Brasil. Já o Alibaba tinha os maiores aplicativos de e-commerce no país. Com ampla base de usuários frequentes e ativos, bastou inserir a funcionalidade de carteira digital, permitindo pagamentos instantâneos peer-to-peer (entre usuários dos apps), para destravar todo tipo de aplicação. O último passo foi levar o pagamento para o mundo físico, através de códigos QR nos pontos de venda - uma espécie de código gráfico que pode ser impresso e que pode ser lido pela câmera fotográfica do celular. Os dados contidos no código QR trazem todas as informações necessárias para que um aplicativo possa enviar pagamentos para aquele estabelecimento. Hoje em dia sua adoção é tão massiva, que até moradores de rua chineses usam códigos QR para receber esmolas.

 

Toda essa migração aconteceu com apoio do governo chinês, que estimulou a adoção do e-commerce e facilitou o ambiente regulatório para permitir a digitalização do dinheiro e dos pagamentos, ainda que por lá, tenha se formado um duopólio, levando Tencent e Alibaba para a lista das 10 empresas mais valiosas do mundo.

 

Movimentações dos aplicativos no Brasil

 

Por aqui, a corrida está acirrada e movimenta os mais variados setores na mesma direção, um fenômeno que eu batizo como "fintequização". Aplicativos de delivery, como iFood e o colombiano Rappi já têm suas carteiras digitais para pagamento com QR code (iFood Pay e Rappi Pay). E-commerces também têm suas iniciativas, como Mercado Livre com o Mercado Pago, bem como Submarino e Americanas (do grupo B2W), com a carteira Ame Digital, ou a Via Varejo (Ponto Frio e Casas Bahia) e Grupo Pão de Açúcar, com o banQi. O maior varejista brasileiro, Magazine Luiza, também já anunciou que entrará nessa corrida com a construção de um superapp de pagamentos e conta digital, movimento que está sendo seguido ainda por outros varejistas físicos, como Pernambucanas e Renner, dentre outraos. Há ainda carteiras de pagamentos em aplicativos de mobilidade como o da Grow (fusão da Grin com Yellow). Não me espantaria se em breve Uber e 99 lançarem iniciativas similares. Outro app que aderiu à carteira digital é o aplicativo de descontos Peixe Urbano, que acabou de lançar o Peixe Pay.

 

Somam-se a esses os apps financeiros, tanto dos bancos tradicionais - como o Iti do Itaú ou SafraPay do Safra -, como de fintechs digitais, como PicPay, RecargaPay, PagSeguro (com seu Aponte Pag), e Banco Inter (com seu Interpag). O Inter, aliás, anunciou uma série de integrações entre seu app e parceiros varejistas, criando um marketplace que pretende se transformar em superapp. É bem provável imaginar que outros bancos digitais e fintechs, atualmente baseadas na oferta de um cartão físico de pagamentos, devam migrar para o modelo de código QR, como Nubank, Neon, MeuPag!, C6, BS2, dentre muitos outros. Até mesmo empresas de cartões de benefícios, como como Alelo e Sodexo, já estão integrando pagamentos móveis em seus apps de vale alimentação. Um movimento que já pode ser observado é a integração de vários apps a redes de terminais de pagamento. O código QR gerado nas maquininhas da Cielo, por exemplo, já pode ser lido pelos apps do Bradesco, Agibank, Original, Picpay, Next, BanQi, Uzzo e, segundo a empresa, em breve também pelos apps da Alelo e Banco do Brasil, além é claro, de sua própria carteira digital, Cielo iD.

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O nome do novo jogo é screen share, ou seja, ocupar o precioso espaço de atenção na tela do celular das pessoas para convertê-lo em realização de pagamentos digitais. Por isso mesmo, não poderiam ficar de fora da corrida os apps mais utilizados pelos brasileiros: os mensageiros de comunicação. Se na China, o WeChat liderou esse processo, os principais aplicativos de mensagens do país, Whatsapp, Facebook Messenger e Telegram, também devem monetizar sua enorme taxa de utilização ao integrar funções de pagamento digital. O formato, contudo será um pouco diferente, por conta de sua presença global: Messenger e  Whatsapp vão utilizar a Libra, moeda virtual anunciada pelo Facebook, que deve interoperar com o Mercado Pago na América Latina. Já o Telegram acabou de anunciar que pretende lançar sua criptomoeda Gram nos próximos 2 meses. Dentre as vantagens dessa abordagem está a possibilidade de realizar pagamentos e transferências internacionais com as moedas virtuais.

 

 

Movimentos regulatórios e as transformações no arranjo de pagamentos brasileiro

 

Para entender os movimentos regulatórios, primeiro é preciso entender que o arranjo de pagamentos brasileiro é formato basicamente por 3 elos: emissores, adquirentes e as bandeiras.

 

Os emissores são as empresas que abrem contas e emitem cartões de pagamento para os consumidores. São tradicionalmente representados pela figura dos bancos, que têm relação com o consumidor final e podem oferecer crédito e outros produtos financeiros a estes consumidores, a partir de seus perfis de gasto e capacidade de pagamento.

 

Na outra ponta, temos os adquirentes: empresas que fornecem os terminais que capturam as transações para os estabelecimentos comerciais. São empresas como Cielo ou Rede, que mantém as famosas maquininhas de cartão. São elas que possuem a relação com os estabelecimentos e que oferecem a eles produtos financeiros, como antecipação de recebíveis. Mais recentemente, sugiram diversos subadquirentes, empresas facilitadoras, que embutem soluções mais completas de pagamentos para estabelecimentos - como ferramentas de pagamento online, anti-fraude, conciliação e gestão - e capturam transações de pagamento em parceria com um adquirente. Nessa categoria estão, por exemplo, gateways e provedores de pagamento online como Moip ou Paypal.

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Unindo essas duas pontas estão as bandeiras, como Visa, Mastercard, American Express e Elo. Elas fazem a ponte entre os adquirentes e os emissores do cartão, fechando o ciclo.

 

Com os avanços recentes, esses papéis estão cada vez mais fluidos. Sem a necessidade de cartão plástico físico, qualquer aplicativo pode ter o papel de emissor e muitas vezes, também de adquirente, já que esse mesmo aplicativo pode também capturar transações para realizar ou receber pagamentos. Nesse cenário, diminui a necessidade de um agente ligando as pontas, com a figura das bandeiras potencialmente perdendo valor.

 

O Banco Central tem um papel fundamental como regulador do arranjo de pagamentos brasileiro, ao estabelecer as licenças e requisitos necessários para cada agente, e tem feito uma série de ações para abrir esse mercado. Uma das mais importantes aconteceu no começo da década de 2010. Você lembra quando os lojistas precisavam ter duas máquinas para aceitar cartões, uma da Visanet e outra da Redecard? Existia praticamente um duopólio, que foi quebrado ao se permitir que uma mesma máquina aceitasse pagamentos de múltiplas bandeiras e que novos adquirentes entrassem no mercado, interoperando em várias redes, o que resultou na profusão de maquininhas que vemos hoje em dia e em alguns unicórnios recentes, como PagSeguro e Stone.

 

Estamos agora vivendo um novo momento importante de mudanças regulatórias que podem impulsionar um novo salto no setor. Somente na semana passada, duas importantes ações foram anunciadas pelo BACEN. A primeira e mais impactante foi o comunicado sobre a criação de um novo sistema de pagamentos instantâneos. Ele permitirá que qualquer pessoa com uma conta em um agente de pagamento - que pode ser um banco ou fintech - transfira dinheiro para outra de forma digital e instantânea, 24 horas por dia, com a mesma facilidade de se mandar uma mensagem por aplicativo. Esse sistema tecnológico será operado pelo próprio Banco Central, o que deve derrubar o custo de transação e tornar obsoletas as operações de DOC e TED. A segunda novidade regulatória está no chamado open banking, sobre a qual o BACEN soltou uma circular falando dos futuros formatos para a remessa de dados do futuro sistema. Essa iniciativa pretende dar abertura e portabilidade aos dados financeiros das pessoas. Assim, será possível portar serviços financeiros de uma determinada instituição para outra, da mesma forma que portamos um número de celular entre operadoras. O seu histórico de crédito, pagamentos e recebimentos será seu, não do seu banco. Assim, será possível levá-lo para outra instituição, que possa te oferecer melhores serviços, em igualdade de condições com seu banco atual, já que ela poderá acessar todos o seu histórico e com isso personalizar uma oferta para você. Taxas e limites de crédito tendem a ficar mais vantajosos, nesse caso.

 

O que vem por aí?

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É impossível prever o futuro no setor. Mas acredito que ainda mais apps vão seguir essa tendência, o que deve impulsionar empresas fornecedoras de infra-estrutura e ferramentas tecnológicas para essa nova categoria da indústria de pagamentos. Novas formas de ativar o consumidor diretamente no smartphone, assim como tecnologias de identificação, segurança e anti-fraude devem surgir. Acredito ainda que devam acontecer muitas consolidações e integrações. Será impossível para o varejo exibir em uma loja dezenas de códigos QR, um para cada app. Por isso, devemos ver cada vez mais interoperações entre redes e sistemas. Também é bem possível começarmos a ver fusões e aquisições no setor.

 

Com todas essas transformações, quem ganha é o consumidor. Bancos sem tarifas, taxas de juros menores, aplicações com rendimentos mais altos e requisitos de entrada simplificados, maquininhas sem aluguel, descontos e outras vantagens já são cada vez mais frequentes. O Mercado Pago, por exemplo, oferece rendimentos de 100% da CDI sobre o saldo que fica parada na conta, com liquidez diária. É um rendimento bem melhor que a maioria das aplicações de entrada oferecida pelos bancos de varejo. O app também tem oferecido - assim como Rappi Pay e iFood Pay - descontos agressivos nas compras com QR code em restaurantes e outros estabelecimentos físicos para impulsionar sua adoção. Nas compras digitais, ainda dá cashback, devolvendo parte dos gastos feitos em seu o e-commerce, estratégia parecida com as carteiras de pagamentos Ame Digital e banQi. Mais benefício para os consumidores.

 

Por todas essas características, é improvável imaginar que por aqui teremos apenas poucos players dominantes em pagamentos móveis, como na China. Estamos vendo surgir um rico ecossistema de agentes. Ganhará relevância quem entender melhor as necessidades dos consumidores e prover o melhor serviço. Mas uma coisa é certa: a forma como fazemos pagamentos nunca mais será a mesma.

 

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