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Tudo sobre o ecossistema brasileiro de startups

Crise escancara o despreparo de bancos e governos para lidar com a realidade das startups

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Por Felipe Matos
Atualização:

 Foto: Steve Buissinne (Pixabay)

Com o avanço da crise econômica decorrente do novo coronavirus, muitas empresas têm lutado pela sobrevivência. As principais medidas de enfrentamento focam em ajustar o fluxo de caixa, com corte de custos, revisão de investimentos, além do acionamento de linhas de crédito e auxílios emergenciais. Com as startups não tem sido diferente. Nas últimas semanas, participei da moderação de uma série de reuniões virtuais organizadas pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento - o BID -, envolvendo startups, investidores, aceleradoras, associações e instituições de apoio ao setor, buscando entender como o ecossistema de inovação do país vem lidando com o momento.

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Dentre as constatações, fica claro que opções de crédito não estão chegando até as startups. Os critérios para análise e concessão de empréstimos utilizados pelas instituições financeiras, em sua grande maioria se baseiam em modelos de empresas tradicionais, industriais, que possuem muitos bens físicos em ativo, como máquinas, equipamentos e estoques. Há uma enorme dificuldade em se entender modelos de negócio de alto crescimento, baseados na economia digital. Por exemplo, uma análise para liberação de limite de crédito que considere a média de receita dos últimos 12 meses irá resultar em um valor liberado muito abaixo da realidade da empresa, já que o faturamento nos meses iniciais será muito mais baixo que o patamar atual. Assim, é comum encontrar empresas que captaram milhões de reais com investidores e possuem faturamento recorrente relevante e crescente, mas não conseguem aprovar sequer uma fração desse valor em crédito. Em empresas mais novas, que não possuem histórico de faturamento ou estão nos primeiros ciclos de crescimento, a situação é ainda mais difícil. Já acompanhei diversos casos em que a empresa, mesmo tendo capital em caixa, vindo de investimentos próprios ou de terceiros, não conseguia sequer um cartão de crédito para realizar pagamento dos serviços online, como servidores em nuvem, para manter suas operações. Nesse mundo, aliás, todo tipo de serviço é digital e pago via cartão de crédito. É muito comum que os empreendedores tenham que pagar despesas das startups com seus cartões de crédito pessoais, precisando gerenciar processos de reembolsos de valores altos, criando uma série de complicações contábeis.

Outro fato comum nas startups é que há um ciclo inicial de desenvolvimento de produto relativamente longo, quando não há faturamento, até que seu produto seja lançado e comece a ganhar tração. Como a maior parte dos bancos usa como critério para atendimento a faixa de faturamento, há startups que mesmo com valores captados em investimentos, dezenas de funcionários de alta qualificação e com demandas financeiras complexas, acabam sendo atendidas pela linha de varejo das instituições financeiras, com produtos voltados para microempresas tradicionais, que pouco se assemelham às necessidades dessas empresas, resultando em serviços financeiros de baixa qualidade para as startups.

O fato de startups focarem no crescimento acelerado, mantendo investimentos pesados em inovação e marketing gera balanços deficitários, geralmente cobertos por capital de investidores. Isso não significa necessariamente que não sejam negócios saudáveis do ponto de vista da geração e caixa operacional - ou seja, com saldo positivo na diferença entre receitas e custo direto de operação. Investidores de risco avaliam startups com base no tamanho da demanda, qualificação do time, do produto, no histórico de crescimento e em sua saúde operacional, chegando a valores multimilionárias e aportes capazes de bancar seu crescimento por muitos meses ou até anos. Porém, essas mesmas empresas, avaliadas pela régua do crédito bancário tradicional, mal conseguem bancar a folha de pagamento de um mês de operação. Cansei de ouvir relatos de startups com enormes dificuldades para explicar para seus gerentes bancários sua necessidade de acessar APIs e sistemas para automatizar digitalmente a compensação do pagamento de boletos. Esse serviço, que normalmente só existe nos bancos para grandes empresas, é quase fundamental para o controle financeiro de uma startup que vende serviços por assinatura.

Ações governamentais de apoio a novos empreendimentos também têm dificuldade em atender startups, inclusive nas medidas emergenciais surgidas no pós-crise. Isso porque programas de crédito e incentivo voltados para pequenas empresas utilizam como critério um conceito de grupo econômico que exclui muitas startups investidas. Como nesse caso, os sócios investidores também costumam participar de sociedades em outros negócios, para o governo, essas startups se tornam parte de um grande grupo econômico. Com isso, deixando de ser consideradas pequenas empresas e ficam excluídas de apoios específicos. Ironicamente, o mesmo conceito de grupo econômico não costuma ter peso em benefício da startup no cálculo dos limites de crédito.

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Um ecossistema de inovação saudável precisa de serviços financeiros adequados às necessidades das empresas inovadoras de alto crescimento. É preciso atualizar com urgência o modelo mental de bancos e agentes de apoio nesse sentido. Já temos cerca de 14 mil startups no país, sendo 12 unicórnios (empresas avaliadas em mais de U$ 1 bilhão), segundo a ABStartups. Esse volume de empresas já movimenta uma parcela significativa e crescente do PIB. Apenas em investimentos, no ano passado, o país atraiu mais de U$ 2,4 bilhões para o setor, segundo a LAVCA - quase o dobro de 2018. Ainda assim, não há oferta adequada de crédito ou mesmo serviços financeiros específicos para essas empresas.

Para finalizar, e para não ficar apenas na crítica, deixo aqui algumas sugestões e contribuições: é preciso criar fundos garantidores de crédito, com critérios de avaliação adequados para empresas inovadoras, permitindo que startups acessem as linhas existentes, sem que precisam oferecer garantias reais. Essa seria uma excelente medida pública de apoio emergencial durante a crise. Outra modalidade de financiamento que também poderia crescer muito no país é o chamado venture debt, que ao invés de ativos tangíveis, toma como garantia ações da própria startup. Há inúmeros casos no mundo de exemplos nessas linhas, com taxas de inadimplência baixíssimas, abaixo inclusive das médias de mercado. Por fim, é necessária a atualização das réguas de crédito para a realidade das startups, considerando elementos como investimentos capitados e taxas de crescimento, por exemplo. Há inúmeros bons exemplos de produtos e serviços financeiros que vem obtendo sucesso ao oferecer ofertas adaptados às necessidades das startups, com a fintech BREX e o Silicon Valley Bank, nos EUA. Já passou da hora de termos esse tipo de solução no Brasil. Se alguém aí fundar ou tiver uma startup que possa resolver esse problema, pode me chamar para ser sócio.

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