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Governo, aprenda com as startups! Erros do auxílio emergencial não são culpa dos usuários

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Por Felipe Matos
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Imagem: Michael Geiger (Pixabay)  

Os últimos dias foram marcados por diversos relatos de problemas com o pagamento do auxílio emergencial oferecido pelo governo federal aos trabalhadores afetados pela pandemia. Dificuldades de acesso aos sistemas, erros dos mais diversos, falta de clareza sobre datas e valores de pagamentos, pendências por inconsistências de dados no cruzamento de bases, sem explicações claras sobre a origem dos problemas ou como resolvê-los. Tudo isso se torna ainda mais grave num momento em que quem mais necessita são os mais humildes do país, como o próprio nome diz, de forma emergencial.

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Eu senti na pele esse problema acompanhando o drama da Andreia, trabalhadora doméstica da minha casa. Logo que começou a crise e as recomendações de isolamento social, nós aqui em casa optamos por antecipar as férias dela e, na sequência, pela suspensão temporária do contrato de trabalho, conforme a Medida Provisória 936/2020, para que ela pudesse ficar em casa, protegendo sua família e a nossa, enquanto receberia o auxílio do governo equivalente ao pagamento de uma parcela do seguro desemprego para cada mês afastada. Apesar de não sabermos exatamente o valor do auxílio, sabíamos que seria menor que o salário integral dela e nos comprometemos a complementar o valor, para que ela não perdesse renda nesse momento difícil. Fizemos um acordo e entramos com os dados na plataforma do Ministério da Economia criada para empregadores domésticos, no dia 18/04. Demoramos alguns dias, porque Andreia não tinha conta em banco e - depois descobrimos - nem crédito no plano de dados para acessar a internet além dos aplicativos liberados no plano pré-pago pela operadora - Facebook e Whatsapp. Conseguimos ajudá-la a abrir uma conta de forma digital e então completamos o cadastro. Passamos a acompanhar periodicamente a plataforma, para ter que certeza que estaria tudo certo. Nas primeiras 3 semanas, entre momentos e instabilidade e erros de sistema, o pedido aparecia com o status "em processamento". Nesse meio tempo, decidimos prorrogar o afastamento de 30 para 60 dias, prazo máximo concedido pela MP, já que o pico da pandemia ainda se aproximava e não queríamos nos expor, todos, a mais riscos. Todos os dias, eu tentava prorrogar o prazo no sistema, aumentando de 30 par 60 dias, mas ele sempre apresentava algum erro no momento de salvar a alteração. Finalmente, nos primeiros dias da maio, o sistema aparentemente aceitou a prorrogação. Não sabíamos se havia sido aprovado, quando o pagamento seria feito, nem seu valor.  Chegou o dia em que normalmente ocorre o pagamento da Andreia - o famoso quinto dia útil - e ainda não havia atualização no sistema. Finalmente, dia 08/05, o status mudou para "Processado" e apareceram as datas de pagamento das parcelas: 12/05 e 11/06. Ficamos, todos, aliviados.

A situação era crítica, pois o marido da Andreia trabalhava em restaurantes e perdeu o emprego no começo da crise. A família já estava endividada e, com a pandemia, a filha da Andreia deixou de ir para escola, onde tinha uma refeição diária. Com todos em casa, aumentaram as despesas com comida, água, luz e gás. O resultado de tudo isso é que começaram a passar dificuldades para se alimentar e, como estavam com o aluguel atrasado, corriam o risco de serem despejados.

No dia 12, fui acessar novamente a plataforma, para ter certeza que tudo estaria bem, mas fui surpreendido pelo fato das parcelas previstas terem sumido da tela e no lugar, apareceu a mensagem "Procure seu empregador para solucionar a(s) sua(s) pendências de cadastro informadas". Havia uma informação no campo observação, com a mensagem "Divergência de dados com a RFB". A mensagem não explicava qual era a divergência de dados, nem dava qualquer direcionamento sobre como solucioná-la. Sequer explicava que RFB é Receita Federal do Brasil - como se todo empregador ou empregado doméstico tivesse obrigação de saber disso. Ironicamente, aliás, a mensagem me orientava a procurar a mim mesmo para solucionar o problema, já que eu era o próprio empregador.

Mas como é que eu poderia saber qual era a divergência, sem qualquer indicativo? Conferi novamente todos os dados. Parecia estar tudo certo. Orientei a Andreia a acessar seu cadastro na Receita, para verificar alguma divergência de dados no seu CPF. Não identificamos nenhum problema ali também. Procurei formas de suporte, sistema de ajuda, alguma maneira de contato, mas não achamos nada. A essa altura, desesperada e com medo de ser despejada, Andreia pediu ajuda e nós adiantamos o valor integral do seu salário, para tentar amenizar a situação, enquanto buscávamos por uma solução. Falando com um amigo contador, veio a dica: verificar o eSocial, um outro sistema do governo que gerencia a folha de pagamentos dos empregados. Parecia tudo cero por lá, até que percebi que o afastamento estava registrado na data do dia seguinte do retorno das férias da Adreia, enquanto o pedido do governo, no último dia das férias. Um dia de diferença entre as datas... Seria isso? Volto pro sistema do auxílio emergencial, para tentar editar a data de início do auxílio, mas não é possível. O pedido estava com status de processado e não havia opção para modificá-lo. Volto então para o eSocial e fico o dia todo tentando achar o caminho para alterar a data do pedido de afastamento. Contei 5 mensagens de erro. A cada tentativa, entre um erro e outro, o sistema dizia que eu tinha que excluir eventos registrados em data posterior para poder então alterar a data do afastamento. "Consulte o manual", dizia a mensagem. Eu consultei e o manual não mencionava com clareza como excluir os tais eventos. A mensagem também não explicava que eventos seriam esses. Reabri as folhas de pagamento e depois de umas 2 horas tentando, consegui finalmente concluir tudo. Tive que diminuir o período de férias para que ela já estivesse formalmente de volta ao trabalho no dia de início do benefício. É claro que isso bagunçou os registros e gerou divergências nos cálculos do que já havíamos pago a ela e em taxas ao governo no período, mas isso é um outro problema contábil que teremos de resolver. Volto para o sistema do auxílio emergencial, será que com isso mudou alguma coisa? Nada. No dia seguinte, alguma mudança? Nada. Será que resolvi a pendência? Não sei. Será que preciso fazer mais alguma coisa? Não sei. Como faz para saber? Também não sei. Perdi o dia todo, atrasei compromissos de trabalho e continuei sem saber se resolvi o problema e, mesmo que tenha resolvido, quando um novo pagamento seria programado?

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Fico pensando no sofrimento da Andreia. Não se trata apenas dela, mas de milhões de trabalhadores brasileiros, os mais humildes, que estão passando por todo tipo de necessidade e não têm computador em casa (alguém já tentou acessar os sistemas pelo celular? Eu tentei e a interface quebra), nem plano de dados para acessar a internet, acesso a um contador, ou afinidade com sistemas burocráticos e com termos  como "divergência de dados da RFB".

A lista de problemas com esse processo é extensa. Se havia uma divergência de dados, por que o sistema não a acusou prontamente ou durante os quase 15 dias que se sucederam ao pedido, evitando que o pagamento fosse prejudicado? Por que não explicou qual era a divergência? O empregador tem que ser adivinho ou detetive para descobrir qual dado poderia estar divergente na RFB (além de ter que saber que RFB é a Receita Federal)? Por que não ofereceu nenhuma orientação sobre como resolver a pendência em questão? E por que o sistema avisou que o pedido foi dado como "processado", exibindo as datas de pagamento das parcelas e depois "voltou atrás"?  Por que é preciso cadastrar a mesma informação em dois sistemas diferentes, se todos são do governo federal, vinculadas ao mesmo ministério, e se referem ao mesmo tema?

Diante de diversos relatos de problemas com os sistemas essa semana, o presidente da república os atribuiu a "falhas dos trabalhadores". Se tem uma coisa que eu aprendi com a gestão de produtos digitais em 22 anos trabalhando com startups é que a culpa nunca é do usuário. Se o sistema permite que o usuário insira uma informação errada, o problema é do sistema, que não faz o tratamento de dados adequadamente, não dá instruções com clareza e não é fácil o suficiente de usar. Gestores de produto que colocam a culpa de falhas no usuário estão apenas tentando esconder sua incompetência.

As startups lideraram a criação da uma nova geração de serviços digitais, com interfaces amigáveis, centradas no usuário. Tudo começou com o anúncio do Google de seu revolucionário sistema de correio eletrônico Gmail, que inaugurou o conceito da chamada Web 2.0, no começo dos anos 2000. Ao contrário dos sistemas web até então, novas tecnologias faziam com que o leitor de e-mails exibisse novas mensagens na tela no navegador, sem a necessidade de recarregar a página, tornando a experiência de uso de um app na internet mais ágil e fácil, parecida com a de aplicativos para computador. Experiência do usuário, aliás, passou a ser o centro do processo de design de sistemas para a internet desde então. O foco saiu do produto e passou para as pessoas. A expressão user experience (ou sua sigla UX) ultrapassou as fronteiras da tecnologia digital para virar parte do processo de criação de produtos e de um novo modelo mental do próprio design contemporâneo, que influenciou profundamente todas as futuras gerações de aplicativos e sistemas desde então.

Em 20 anos, o governo parece não ter aprendido a lição das startups e ainda está preso a modelos arcaicos em seus sistemas digitais de antes dos anos 90. E nem foi por falta de tentativa. A Associação Brasileira de Fintechs, que reúne startups e empresas de serviços financeiros online, como bancos digitais e maquininhas de cartões, fez uma carta aberta ao governo no começo de abril. Ali, oferecia sua tecnologia, capilaridade e facilidade de seus sistemas, colocando-os à disposição do poder público para realizar os pagamentos de auxílios e fazer com que a oferta de crédito emergencial pudesse chegar rapidamente às mãos de quem precisa, de forma descentralizada, ágil e digital. Segundo apurei, não obtiveram resposta. Na verdade, o governo fez pior. O presidente Bolsonaro vetou hoje artigo do PL nº 13.982, que permitia a contratação de fintechs para o apoio na distribuição do auxílio emergencial.

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Infelizmente, ao invés de contar com a tecnologia e apoiar o ecossistema de inovação nacional, vamos continuar vendo a formação de filas e aglomerações em agências da Caixa e casas lotéricas e toda essa série de dificuldades, das quais meu relato é apenas mais um exemplo. Por outro lado, os bilhões liberados aos grandes bancos também não estão chegando como crédito para os pequenos negócios em dificuldade. Até quando teremos que receber serviços públicos de péssima qualidade, com sistemas e processos excessivamente burocráticos e desconectados da realidade das pessoas, centrados no sistema e não no cidadão? Até quando empreendedores brasileiras ficarão no topo do ranking mundial de tempo gasto para pagamento de impostos, tendo que lidar com toda essa panacéia de processos duplicados, sistemas desintegrados e ultrapassados?

Este blog procurou a Assessoria de Imprensa do Ministério da Economia para buscar a posição do governo sobre os pontos citados nesse artigo, mas não obteve resposta até o fechamento da postagem.

Nota: o post foi atualizado em 15/05 às 12:12, para incluir informações sobre o veto de Bolsonaro a artigo do PL que dava possibilidade a fintechs participarem do processo de pagamentos emergenciais.

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