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P2P e cultura digital livre

O que a internet pode aprender com a cultura livre da Jamaica

Em 1973, o produtor Winston Riley criou a música que o tornou uma lenda na música jamaicana. Talvez você nunca tenha ouvido falar do riddim "Stalag", mas se já ouviu um pouco de reggae certamente se lembrará dos acordes da base criada por ele, que pode ser ouvida em pelo menos 279 músicas - e contando.

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Por Tatiana Mello Dias
Atualização:

Na Jamaica, os músicos nunca se preocuparam com os direitos autorais. O reggae surgiu como uma cultura popular - os discos eram gravados em estúdios rudimentares e os artistas se apresentavam na rua, nos soundsystems, em um ecossistema marginal formado por produtores, músicos, DJs (os selectors) e os cantores. Tudo isso começava na base instrumental: o riddim.

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Quando um produtor gravava um disco, criava não apenas uma música - mas um sistema que seria remixado, recriado e transformado em diversas outras obras. Stalag foi o riddim mais remixado de toda a música jamaicana. "Ring the Alarm", clássico reggae do músico Tenor Saw, foi feito sobre o Stalag Riddim. "Bam bam", outro reggae famoso gravado pela Sister Nancy, também. Bob Marley o usou em um show. Stalag rompeu os limites da pequena ilha e é citado até mesmo em "Don't Believe The Hype", clássico do Public Enemy.

Morto em janeiro deste ano, Riley foi longe - sem ter tentado controlar as cópias e as reproduções desta música. Na verdade, na Jamaica, a noção de copyright chegou depois da explosão do reggae (a lei é de 1993). O estilo musical mais famoso do país não teria tido o tamanho e a sua importância - que levou artistas como Rolling Stones, The Clash e Serge Gainsbourg a gravarem nos estúdios jamaicanos- se estivesse preso às amarras das leis de direitos autorais.

Para Larissa Mann. DJ e doutora em direito em Harvard, ainda há um buraco entre a lei e as práticas diárias. Americana, ela morou na Jamaica por um tempo para estudar como os jamaicanos desenvolvem hoje sua relação com as leis de direitos autorais - com base na dança.

A dança de rua é peça-chave na cultura da ilha - e o riddim tem um papel fundamental nisso. Em muitas festas, o selector apenas colocava o riddim para tocar e chamava os cantores pelo microfone. Eles improvisavam sobre a mesma base, criando músicas bem diferentes entre si, mas com a mesma batida para que o público dançasse sempre os mesmos passos, em sincronia. "Fazer coisas com riddims é parte da identidade cultural jamaicana", diz Larissa. Essa prática sempre desafiou princípios do copyright: a propriedade privada, a proteção da originalidade, a exigência de autorização. Se eles fossem seguidos, a cultura jamaicana não seria a mesma.

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A subversão quase involuntária é a mesma que acontece, por exemplo, com o tecnobrega no Brasil, que desenvolveu um ecossistema e um modelo de negócios de sucesso às margens da lei. Mas a lei existe - e está sendo imposta. Um famoso produtor de riddims, Dave Kelly, processou o músico Linton "TJ" White cobrando royalities. Segundo a lei, ele tem direito - há um movimento para tentar apertar o cerco e fazer os produtores pagarem pelo uso das bases musicais. A EMI também contatou outro músico, Vybz Kartel, reclamando por uso indevido e exigindo que a música "Rampin Shop" seja "destruída" e pare de tocar em rádios.

Larissa Mann questiona a aplicação da lei em uma cultura que, tradicionalmente, surgiu às margens dela. O remix, para a pesquisadora, deve ser "considerado seriamente como uma prática criativa, e não como um exemplo dos selvagens jamaicanos sem lei" - a maneira como, segundo ela, alguns setores do governo enxergam a cena reggae e dancehall. Ela vê de uma perspectiva antropológica: "Quando as pessoas não obedecem uma lei que você conhece, isso não significa que elas não tenham nenhuma lei. As regras que elas seguem vêm de algum lugar". "A lei de copyright não é universal. Essas leis têm uma cultura incorporada, mas seria sensato examinar o que isso significa quando são impostas para lugares diferentes", diz Larissa, que critica o caso da EMI: "a lei de direitos autorais aparentemente funciona muito bem como uma ferramenta dos fortes contra os fracos".

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