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A China vigia seus cidadãos, mas depende de tecnologia dos EUA para isso

Chips Intel e Nvidia operam um centro de supercomputação que rastreia pessoas em um lugar onde o governo reprime as minorias, o que levanta questões sobre a responsabilidade da indústria de tecnologia

Por Paul Mozur e Don Clark
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Chips fabricados pela Intel e Nvidia, empresas americanas de semicondutores, alimentam o complexo chinês desde sua inauguração em 2016 Foto: Damir Sagolj/Reuters

No fim de uma estrada deserta e cercada por prisões, no fundo de um complexo repleto de câmeras, a tecnologia dos Estados Unidos está alimentando uma das partes mais invasivas do estado de vigilância da China. Os computadores do complexo, conhecido como Centro de Computação em Nuvem Urumqi, estão entre os mais poderosos do mundo. Eles podem assistir a mais imagens de vigilância em um dia do que uma pessoa em um ano. Eles procuram rostos e padrões de comportamento humanos. Rastreiam carros. Monitoram telefones.

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O governo chinês usa esses computadores para vigiar um número incalculável de pessoas em Xinjiang, região ocidental da China onde Pequim desencadeou uma campanha de vigilância e repressão em nome do combate ao terrorismo.Chips fabricados pela Intel e Nvidia, empresas americanas de semicondutores, alimentam o complexo desde sua inauguração em 2016. 

Em 2019, uma época em que relatórios diziam que Pequim estava usando tecnologia avançada para rastrear e aprisionar as minorias predominantemente muçulmanas de Xinjiang, novos chips americanos ajudaram esses supercomputadores a entrar na lista dos mais rápidos do mundo. Tanto a Intel quanto a Nvidia dizem que desconhecem o que chamam de uso indevido de sua tecnologia.

Tecnologia poderosa e seu potencial uso indevido atingem o cerne das decisões que o governo Biden deve enfrentar. O governo Trump proibiu a venda de semicondutores avançados e outras tecnologias para empresas chinesas envolvidas em questões de segurança nacional ou direitos humanos. Uma questão crucial para o presidente eleito Joe Biden será: apertar, afrouxar ou repensar essas restrições?

Algumas figuras da indústria de tecnologia argumentam que a proibição foi longe demais, cortando vendas valiosas de produtos americanos em muitos usos inofensivos e estimulando a China a criar seus próprios semicondutores avançados. De fato, a China está gastando bilhões de dólares para desenvolver chips de ponta.

Por outro lado, os críticos ao uso da tecnologia americana em sistemas repressivos dizem que os compradores exploram lacunas nos produtos e que a indústria e as autoridades devem acompanhar mais de perto as vendas e o uso.

Empresas afirmam que têm pouco controle do uso de seus dispositivos

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As empresas costumam comentar que têm pouco a dizer sobre a destino de seus produtos. Os chips do complexo Urumqi, por exemplo, foram vendidos pela Intel e Nvidia para a Sugon, empresa chinesa que está por trás do centro. A Sugon é uma fornecedora importante das forças militares e de segurança chinesas, mas também fabrica computadores para empresas comuns.

Esse argumento já não é suficiente, disse Jason Matheny, diretor fundador do Centro de Segurança e Tecnologia Emergente da Universidade de Georgetown e ex-funcionário da inteligência dos Estados Unidos. “O governo e a indústria precisam ser mais cuidadosos agora que as tecnologias estão avançando a um ponto em que você consegue fazer vigilância em tempo real, usando um único supercomputador para vigiar milhões de pessoas, potencialmente”, diz.

Não há evidências de que a venda de chips Nvidia ou Intel, que antecederam a ordem de Trump, violou quaisquer leis. A Intel disse que não vende mais semicondutores de supercomputadores para a Sugon. Mesmo assim, ambas continuam vendendo chips para a empresa chinesa.

A existência do complexo Urumqi e o uso de chips americanos não são segredo, e não faltavam pistas de que Pequim estava usando o centro para vigilância. Em 2015, quando o complexo começou a ser desenvolvido, a mídia estatal e a Sugon já se gabavam de seus laços com a polícia. Em materiais de marketing distribuídos na China cinco anos atrás, a Nvidia promoveu as instalações do complexo Urumqi e se gabou de que o “aplicativo de vigilância por vídeo de alta potência” conquistara o cliente.

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A Nvidia disse que os materiais se referiam a versões mais antigas de seus produtos e que, na época, a vigilância por vídeo fazia parte da discussão em torno das “cidades inteligentes”, um esforço chinês para usar tecnologia para resolver problemas urbanos como poluição, tráfego e crime. Um porta-voz da Nvidia disse que a empresa não tinha motivos para acreditar que seus produtos seriam usados “para qualquer propósito impróprio”.

O porta-voz acrescentou que a Sugon “não é um cliente significativo da Nvidia” desde a proibição do ano passado. Ele também disse que desde então a Nvidia não forneceu assistência técnica para a Sugon. Um porta-voz da Intel, que ainda vende chips de menor tecnologia para a Sugon, disse que iria restringir ou interromper negócios com qualquer cliente que descobrisse ter usado seus produtos para violar os direitos humanos.

Aparelhos são usados para vigiar minoria muçulmana

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Os avanços na tecnologia deram às autoridades de todo o mundo poder substancial para vigiar e classificar as pessoas. Na China, os líderes levaram a tecnologia a um extremo ainda mais distante. Inteligência artificial e testes genéticos são usados para examinar as pessoas para ver se são uigures, um dos grupos minoritários de Xinjiang. As empresas e autoridades chinesas afirmam que seus sistemas conseguem detectar extremismo religioso ou oposição ao Partido Comunista.

O Centro de Computação em Nuvem Urumqi – também chamado de Centro de Supercomputação de Xinjiang – entrou na lista dos computadores mais rápidos do mundo em 2018, ocupando a 221ª posição. Em novembro de 2019, novos chips ajudaram a empurrar seu computador para a 135ª posição.

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Dois centros de dados operados por forças de segurança chinesas ficam ao lado, uma forma de reduzir potencialmente o tempo de espera, de acordo com especialistas. Nas proximidades também se encontram seis prisões e centros de reeducação. Quando um repórter do New York Times tentou visitar o centro em 2019, foi seguido por policiais à paisana. Um guarda o mandou embora.

A mídia oficial chinesa e as declarações anteriores da Sugon descrevem o complexo como um centro de vigilância. Em agosto de 2017, as autoridades locais disseram que o centro apoiaria um projeto de vigilância da polícia chinesa chamado Olhos Afiados e que poderia pesquisar 100 milhões de fotos por segundo. Em 2018, de acordo com divulgações da empresa, seus computadores poderiam se conectar a 10 mil feeds de vídeo e analisar 1 mil simultaneamente, usando inteligência artificial.

Em Xinjiang, o policiamento preventivo geralmente serve como abreviatura para prisões preventivas por comportamentos considerados desleais ao partido. Isto pode incluir uma demonstração de devoção muçulmana, laços com famílias que vivem no exterior, possuir dois telefones ou não possuir telefone nenhum, de acordo com depoimentos uigures e documentos oficiais da política chinesa.

A tecnologia ajuda a analisar grandes quantidades de dados que os humanos não conseguiriam processar, disse Jack Poulson, ex-engenheiro do Google e fundador do grupo de defesa Tech Inquiry. “Quando você tem algo parecido com um estado de vigilância, sua principal limitação é a capacidade de identificar eventos de interesse em seus feeds”, disse ele. “A maneira como você amplia sua vigilância é por meio de aprendizado de máquina e inteligência artificial em grande escala”.

O complexo Urumqi começou a ser desenvolvido antes que os relatos de abusos em Xinjiang se generalizassem. Em 2019, governos de todo o mundo protestavam contra a conduta da China em Xinjiang. Naquele ano, o computador da Sugon apareceu no ranking internacional de supercomputação, usando processadores Intel Xeon Gold 5118 e chips de inteligência artificial avançados Nvidia Tesla V100.

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Não está claro como ou se a Sugon obterá chips poderosos o suficiente para manter o complexo de Urumqi nessa lista. Mas tecnologias menos avançadas e geralmente usadas para executar tarefas inofensivas também podem ser empregadas em vigilância e supressão. Os clientes também podem se valer de revendedores de outros países ou chips feitos por empresas americanas no exterior.

No ano passado, a polícia de dois condados de Xinjiang, Yanqi e Qitai, comprou sistemas de vigilância que rodavam com chips Intel de nível inferior, de acordo com documentos de compras governamentais. O bureau de segurança pública da prefeitura autônoma de Kizilsu Kyrgyz comprou em abril uma plataforma de computação que usava servidores com chips Intel menos potentes, de acordo com os documentos, embora a agência tenha sido colocada em uma lista proibida do governo Trump no ano passado por seu envolvimento com vigilância.

Por enquanto, a dependência chinesa dos chips americanos ajudou o mundo a recuar, disse Maya Wang, pesquisadora chinesa da Human Rights Watch. “Temo que, em alguns anos, as empresas chinesas e o governo encontrem sua própria maneira de desenvolver chips e essas capacidades”, disse Wang. “Então, não haverá como tentar impedir esses abusos”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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