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AA no Zoom: tratamento para abuso de substâncias vai para o mundo digital

Pandemia fez reuniões se tornarem virtuais, mas tanto participantes quanto profissionais apostam que formato veio para ficar, com vantagens claras na recuperação

Por Matt Richtel
Atualização:
Não só estão ocorrendo milhares de reuniões do AA no Zoom, mas também outras figuras importantes na atividade da reabilitação entraram em ação Foto: Gabby Jones/Bloomberg

Até a pandemia do novo coronavírus, as discretas reuniões dos Alcoólicos Anônimos (AA) e outros grupos de usuários de drogas em recuperação aconteciam tranquilamente, todos os dias, nos porões das igrejas, em um cômodo livre nas Associações Cristã de Moços (YMCA, na sigla em inglês) ou nos fundos de um café. Mas quando a pandemia começou, participantes desses grupos encontraram as portas rapidamente fechadas por conta dos esforços para evitar a disseminação da covid-19.

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O que aconteceu depois disso foi uma daquelas cascatas criativas que o vírus desencadeou indiretamente. A reabilitação passou a ser realizada online, quase da noite para o dia, com zelo. Não só estão ocorrendo milhares de reuniões do AA no Zoom e em outros pontos de encontro digitais, mas também outras figuras importantes na atividade da reabilitação entraram em ação, transformando um ritual diário que muitos acreditam ter salvado suas vidas.

“Os participantes do AA com quem converso já passaram daquele fascínio inicial com a experiência digital que dá a impressão de estar participando do Hollywood Squares (programa de TV)”, disse Lynn Hankes, 84 anos, que está em recuperação há 43 anos e é médica aposentada na Flórida com três décadas de experiência no tratamento de vícios. “Eles agradecem ao Zoom por sua sobrevivência.”

Embora a reabilitação online tenha surgido como uma medida paliativa de emergência, as pessoas na área dizem que ela provavelmente se tornará uma parte permanente da maneira como o abuso de substâncias é tratado. 

Ser capaz de encontrar uma reunião para se conectar 24 horas por dia, 7 dias por semana tem vantagens bem-vindas para diversos grupos de pessoas. Pode ser gente que não têm acesso a meios de transporte. Ou alguém que está doente. Há também quem esteja fazendo malabarismos com os cuidados com os filhos ou desafios do trabalho que dificultam uma reunião presencial em um determinado dia. Poder se manter facilmente conectados a uma rede de apoio é importante. Além disso, as reuniões online também podem ser um bom ponto de partida para quem está começando a reabilitação.

“Existem tantos pontos positivos quando as pessoas não precisam sair de casa. Isso economiza tempo”, disse Andrew Saxon, especialista no tratamento de vícios e professor do Departamento de Psiquiatria e Ciências do Comportamento da Escola de Medicina da Universidade de Washington. “O potencial para pessoas que não teriam acesso ao tratamento [presencial] facilmente é um grande bônus.”

Interação online é promissora, mas tem obstáculos

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É muito cedo para dados a respeito da eficácia da reabilitação online em comparação com sessões presenciais. Algumas pesquisas recentes validam o uso da tecnologia em áreas relacionadas ao tratamento, como transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) e depressão, o que sugere esperança para a abordagem, disseram alguns especialistas na área.

Mesmo aquelas pessoas que dizem que a terapia presencial permanecerá superior também disseram que o novo formato provou ser um grande benefício para muitos que, de outra forma, teriam enfrentado uma das maiores ameaças à recuperação: o isolamento.

As implicações vão muito além da pandemia. Isso porque todo o sistema de reabilitação tem lutado por anos com práticas que alguns veem como dogmáticas e insuficientemente eficazes, dadas as altas taxas de recaída.

"Isso desafia nossas preocupações pré-concebidas em relação ao que é necessário para o tratamento e a recuperação, mas também valida a necessidade de conexão com um grupo de pares e a necessidade de acesso imediato", disse Samantha Pauley, diretora nacional de serviços virtuais da Hazelden Betty Ford Foundation, uma organização de defesa e tratamento de vícios com clínicas em todo o país.

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Em 2019, a Hazelden Betty Ford tentou pela primeira vez a terapia de grupo online com pacientes em San Diego, que frequentavam sessões ambulatoriais intensivas – de três a quatro horas por dia, em três a quatro dias por semana. Quando a pandemia começou, a organização lançou o conceito na Califórnia, Washington, Minnesota, Flórida, Nova York, Illinois e Oregon – onde Samantha trabalha. Desde então, o modelo foi levado para Nova Jersey, Missouri, Colorado e Wisconsin.

Samantha disse que 4,3 mil pessoas participaram dessa terapia intensiva – que envolve o login em sessões de grupo ou individuais usando uma plataforma chamada Mend, que é semelhante ao Zoom. Os resultados preliminares, disse ela, mostram que o tratamento é tão eficaz quanto as reuniões presenciais na redução dos desejos e outros sintomas. Outras 2,5 mil pessoas participaram de grupos de apoio para familiares, como o Al-Anon (para quem está próximo a um alcóolatra) e o Nar Anon (o mesmo, para narcóticos). Se não fosse pela covid-19, disse Samantha, a “exploração criativa” das reuniões online ainda teria acontecido, mas muito mais lentamente.

Um obstáculo para a reabilitação online intensiva envolve o teste de drogas em pacientes, que normalmente dariam amostras de saliva ou urina sob supervisão pessoal. Várias alternativas surgiram, incluindo uma em que as pessoas cospem em um copo de teste enquanto são observadas na tela por um profissional que verifica a identidade da pessoa. A amostra então é descartada em uma clínica ou enviada pelo correio, embora o risco de trapaça sempre permaneça. Em outros casos, os pacientes podem visitar um laboratório para um teste de drogas.

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Além disso, alguns sinais clínicos de compulsão não podem ser facilmente diagnosticados em uma tela. “Você não consegue ver a transpiração que pode indicar que a pessoa está sofrendo de abstinência moderada. Existem limitações”, disse Christopher Bundy, presidente da Federação de Programas Estaduais de Saúde para Médicos, um grupo que representa 48 programas estaduais de saúde para médicos que atendem médicos em recuperação. Ele disse que centenas de médicos nesses programas estão participando de reuniões virtuais regulares monitoradas por profissionais, nas quais se reúnem com um punhado de especialistas para obter apoio de pares e avaliar seu progresso.

“Esse tipo de coisa desafiou nossas suposições”, disse ele sobre a pandemia e o uso da internet para essas terapias. “Há uma sensação de que não é a mesma coisa, mas é parecido o suficiente.” / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

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