Após polêmicas, lei das fake news tem votação adiada no Senado

Demora na apresentação do novo texto, relatado por Ângelo Coronel (PSD-BA), levou Alessandro Vieira (Cidadania-SE) a retirar projeto de pauta; segundo especialistas em direito digital, nova proposta continha retrocessos para legislação

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Por Bruno Capelas e Bruno Romani
Atualização:
Lei das fake news deve ser retiradade votação Foto: Leonardo Silva/Agência Senado

O projeto de lei 2630/2020, apelidado de ‘lei das fake news’, não será votado nesta tarde de terça-feira, 2, no Senado Federal: em sua conta no Twitter, o autor – Alessandro Vieira (Cidadania-SE) – alegou que iria retirar o projeto de pauta após a demora na apresentação oficial do relatório pelo senador Ângelo Coronel (PSD-BA). “Considerando que o relatório não foi apresentado até o momento e que é importante que todos tenham segurança quanto ao seu conteúdo”, disse o parlamentar sergipano. Após a manifestação de Vieira, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), afirmou que vai retirar o texto da pauta e adiar sua análise para a próxima semana.  "Além de garantir a contribuição de todos os senadores na construção do texto, o PL 2630/2020 deve assegurar que as pessoas possam continuar se manifestando livremente como como já garante nossa Constituição, mas ao mesmo tempo protegê-las de crimes virtuais", disse Alcolumbre em sua conta no Twitter. 

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Escrito por Vieira em parceria com os deputados Tabata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES), o projeto propunha regular a forma como redes sociais e aplicativos de mensagens funcionam no país a fim de impedir a disseminação de desinformação, notícias falsas e manipulação. O texto chegou a ser elogiado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em entrevista coletiva na semana passada, por pedir a responsabilização das plataformas pela desinformação na internet. 

No início da semana, porém, o texto foi alvo de críticas por especialistas e entidades de direito digital, que alegaram que a proposta de responsabilizar redes sociais e aplicativos de mensagem pelo conteúdo que por eles passa poderia levar à censura e aumento do monitoramento na internet brasileira. 

Além disso, entidades como o Comitê Gestor da Internet (CGI.br), a Associação Brasileira de Provedores de Internet (Abrint) e a Associação Brasileira de Internet (Abranet) levantarem preocupação com o assunto e pediram mais tempo para seu debate. Após as críticas, os autores do projeto alegaram que ele teria trechos polêmicos mais removidos para ser votado nesta terça – os cortes apareceriam no substitutivo apresentado por Coronel. 

Novo texto pede documentos para usar redes sociais e cria sistema ‘Black Mirror’

No entanto, o texto de Coronel já circulava no mundo jurídico na manhã desta terça-feira e foi obtido pela reportagem do Estadão. Segundo especialistas em direito digital, o substitutivo continha ainda mais problemas que o texto original. A proposta de Coronel incluiu muitos novos artigos, excluiu o direito ao anonimato na rede, pede apresentação de documentos para uso de redes sociais e até institui um sistema de ‘ranking’ dos usuários a partir do conteúdo que publicam na rede – algo que só pertence a regimes autoritários ou a ficção científica, como a série Black Mirror. “O novo projeto é uma seleção pelo que de pior passou pelo Congresso na última década”, afirma Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio) e professor de direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). 

Coordenador de pesquisa do InternetLab, centro de pesquisa em tecnologia e direito digital, Thiago Oliva concorda. “O novo texto traz uma perspectiva de criminalização para a internet, como se todos que ali entrassem fossem suspeitos de algum ato ilícito”, diz. Entre os artigos que levam a essa análise, afirma o pesquisador, está um de que cria duas classes de contas nas redes sociais e aplicativos. As contas identificadas, que precisariam da apresentação de documentos como RG, CPF e comprovante de residência, dariam ao usuário plena liberdade de uso das plataformas na rede – já as não identificadas teriam utilização limitada. 

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“É algo que retira o direito ao anonimato. Hoje, o anonimato tem sido usado para abusos, mas ele tem um papel importante na liberdade de expressão, especialmente em contextos autoritários ou por parte de grupos vulneráveis, como representantes dos movimentos negro e LGBT”, diz Oliva. “Além disso, a legislação atual já prevê mecanismos de investigação nesse caso, como o uso dos metadados. Não existe anonimato absoluto na internet, porque toda conexão é intermediada.” 

Outro artigo bastante criticado no texto é o de que as redes sociais teriam de criar um sistema de pontuação de usuários. Com critérios como tempo de existência da conta, quantidade de denúncias e o histórico do conteúdo publicado, esse sistema serviria para filtrar se as publicações deveriam ser exibidas nas redes sociais ou não – algo que rendeu comparações ao episódio Queda Livre, da série de ficção científica Black Mirror, e pode gerar distorções, ainda mais em tempos de cancelamento e polarização política. “Se eu sou ativista antirracista e grupos supremacistas promovem ‘reclamações’ contra mim, isso vai me dar nota baixa”, afirmou a pesquisadora Mariana Valente, do InternetLab, em sua conta no Twitter. 

O projeto de Coronel também foi criticado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), em posicionamento divulgado no início da tarde. “A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) se coloca frontalmente contrária a outorgar poderes a qualquer instituição ou pessoa para determinar o que é verdade e o que não é, sobretudo quando o objetivo final for impor sanções”, afirmou a entidade, em nota. A entidade pediu ainda que seja suspensa a votação “deste e de qualquer projeto de lei cujo objeto seja a desinformação até a normalização das atividades do Congresso, quando a exigência de ampla discussão com a sociedade possa ser atendida em sua plenitude."

Após retirada de pauta, Tabata critica Coronel e apresenta novo projeto

O relatório de Coronel que chegou a circular foi criticado inclusive pela deputada Tabata Amaral em sua conta no Twitter, na tarde desta terça-feira. "É um retrocesso. Ele não incorpora sugestões da nossa consulta pública e incluiu pontos na direção oposta do que defendemos", declarou a parlamentar. Após a retirada do projeto de Vieira da pauta do Senado, ela disse ainda ter apresentado um novo projeto, o 3063/2020, que será "focado exclusivamente em transparência e combate a robôs não identificados".