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Como meu chefe me monitora quando trabalho de casa

Com popularização da quarentena, muitas empresas adotaram sistema de vigilância que invade a privacidade de trabalhadores; reportagem do NYT testou métodos

Por Adam Satariano
Atualização:

Em 23 de abril, comecei a trabalhar às 8h49 da manhã, lendo e respondendo a e-mails, navegando pelas notícias e rolando a tela do Twitter. Às 9h14, fiz alterações numa reportagem futura e dei uma lida nas anotações de uma entrevista. Às 10h09, sem qualquer ânimo para trabalhar, fiquei lendo sobre a vila irlandesa onde Matt Damon está passando a quarentena. Todos esses detalhes – dos sites que visitei às minhas coordenadas de GPS – estavam disponíveis para a supervisão da minha chefe.

Eis o porquê: com milhões de pessoas trabalhando em casa por causa da pandemia de coronavírus, as empresas estão procurando maneiras de garantir que façamos o que devemos fazer. Explodiu a demanda por softwares que conseguem monitorar os funcionários, com programas que rastreiam as palavras que digitamos, tiram fotos com nossas câmeras de computador e fornecem aos nossos gerentes um índice de quem está passando muito tempo no Facebook e pouco no Excel.

Sistema usa webcam para vigiar o funcionário durante o trabalho – e também grava suas telas Foto: Adam Satariano/NYT

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A tecnologia levanta espinhosas questões de privacidade: onde os empregadores traçam a linha entre a garantia da produtividade do trabalho em casa e a vigilância assustadora? Para tentar responder, virei o software espião contra mim mesmo.No mês passado, baixei o software de monitoramento de funcionários produzido pela Hubstaff, uma empresa de Indianápolis. 

A cada poucos minutos, o programa fazia uma captura de tela dos sites que eu estava navegando, dos documentos que estava escrevendo e das redes sociais que estava visitando. A partir do meu telefone, o software também mapeava meus deslocamentos, entre eles duas horas de passeio de bicicleta pelo Battersea Park com meus filhos, no meio de um dia de trabalho (ops...).

Para concluir o experimento, passei as senhas do programa da Hubstaff para minha editora, Pui-Wing Tam, para que ela pudesse me rastrear. Depois de três semanas de monitoramento digital, o futuro da vigilância do trabalho nos pareceu excessivamente invasivo. Nas palavras dela: “eca”. Aqui abaixo, um relato de como foram esses dias. 

Primeira semana: ceticismo e adaptação

Adam: Baixei o Hubstaff no laptop e no celular com uma boa dose de ceticismo. Já tinha ouvido falar que fazia anos que as empresas de Wall Street vinham usando esse tipo de ferramenta, sob o argumento da segurança de dados, sem que os funcionários pudessem dar qualquer opinião sobre a maneira como estavam sendo vigiados.

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Dave Nevogt, fundador e presidente executivo da Hubstaff, que me deu um período de teste gratuito para experimentar seu software por assinatura, disse que as ordens de trabalho em casa transformaram o software de monitoramento de funcionários num item fundamental. Os períodos de teste do software da Hubstaff, cujas assinaturas custam de US$ 7 a US$ 20 por mês por usuário, triplicaram desde março, disse ele.

“O mundo está mudando”, disse Nevogt. Os empregados sabem que estão sendo vigiados, por isso não há violação de privacidade, acrescentou ele. A principal ferramenta do software da Hubstaff é um monitor de atividades que fornece aos gerentes uma visão geral do que um funcionário está fazendo. A cada dez minutos, o sistema calcula a porcentagem de tempo que o empregado passou digitando ou movendo o mouse do computador. Essa porcentagem funciona como uma pontuação de produtividade.

Tentei levar o feedback numa boa. Todos os dias, chegava um e-mail para mim e para a Pui-Wing, trazendo uma visão geral do meu expediente: as horas trabalhadas, a pontuação de produtividade e os sites e aplicativos que eu estava usando.

Montagem embaralhou telas do repórter do NYT; preocupação é "e se chefe ver informação financeira ou de saúde?" Foto: NYT

Certo dia, no mês passado, quando estava dando os retoques finais num artigo, passei 3 horas e 35 minutos editando o documento e uma hora com um arquivo que tinha anotações de pesquisas e entrevistas aberto em segundo plano. Gastei mais 90 minutos no e-mail.

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Foi um dos meus dias mais produtivos, mas o software insistia em calcular minhas distrações. Ele mostrou que passei 35 minutos no Twitter e perdi outros 11 navegando no Spotify. O Slack, aquela ferramenta de colaboração profissional, engoliu mais 22 minutos. Em outros dias, o problema foi a comida: num deles gastei 10 minutos procurando uma pizza para viagem.

O Hubstaff também registrou minhas coordenadas de GPS, um recurso que Nevogt disse que era usado principalmente por empresas que tentavam garantir que seus vendedores estivessem visitando clientes. Como Londres está sob confinamento (lockdown) desde o final de março, não tive muitos deslocamentos para rastrear. O software só me pegou correndo num parque aqui perto. E indo a uma loja de vinhos.

Segunda semana: a chefe responde

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Adam: Uma vez acostumado à vida sob vigilância, tomei a questionável decisão de deixar que Pui-Wing tivesse acesso ao programa. “Desde que você prometa não me demitir, não me julgar nem me chantagear pelo que quer que venha a acontecer aqui”, escrevi para ela num e-mail, dias antes.

Pui-Wing: Fiquei curiosa, confesso. Mas também relutante: será que realmente queremos ver a localização de alguém em tempo real? Ou a frequência com que determinada pessoa usa o Twitter?

Com essas dúvidas na cabeça, abri o programa e vi um painel. Ele mostrava várias categorias, entre elas capturas de tela do computador do Adam, seus cronogramas, seus aplicativos, seu paradeiro e os URLs que ele visitou.

Cliquei nas capturas de tela e vi que Adam estivera online por 9 horas, 42 minutos e 17 segundos no dia anterior. Entre as dezenas de capturas de tela vi algumas da teleconferência por Google Meet da qual Adam havia participado, as quais mostravam fotos extremamente nítidas dos rostos de vários colegas.

Recuei imediatamente para o painel principal. Lá, vi que a produtividade de Adam durante a semana estivera na decepcionante marca de 45%. Depois, ele me explicou que o número não refletia com precisão o tempo investido no trabalho, porque registrava apenas os momentos em que ele estava digitando, não quando estava em chamadas telefônicas ou fazendo qualquer outro trabalho fora do computador. Sei, sei.

Adam: Dá para ver o apelo do Hubstaff para os empregadores preocupados com o desperdício de dinheiro numa economia instável. Nevogt me apresentou a Chris Heuwetter, que administra uma empresa de marketing em Jupiter, Flórida, chamada 98 Buck Social.

Heuwetter disse que viu as horas de trabalho entrarem em colapso quando deixou que seus 20 funcionários trabalhassem em casa por causa do surto de coronavírus. A empresa estava enfrentando uma queda nas vendas, mas Heuwetter disse que alguns funcionários só respondiam às mensagens depois das 10 horas da manhã. As respostas aos pedidos dos clientes também estavam lentas. Então, ele começou a usar o Hubstaff em 31 de março. A partir de daí, disse ele, os níveis de produtividade de seus funcionários aumentaram “imediatamente”.

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Dava para entender. O Hubstaff também estava começando a afetar o meu comportamento. Eu ligava o computador bem cedo todos os dias, porque o software cronometrava minhas atividades o tempo todo. Sabendo que minhas ações online estavam sendo supervisionadas, parei de gastar (muito) tempo lendo notícias sobre esportes e deixei de abrir aplicativos de mensagens no laptop, com medo de que alguma captura de tela pegasse uma conversa particular.

Mas minhas pontuações de atividade permaneceram teimosamente baixas, entre 30% e 45%. Em 14 de abril, o Hubstaff mostrou que trabalhei por quase 14 horas, mas com um índice de produtividade de 22%.

Terceira semana: chega! 

Adam: O momento em que cansei de ser monitorado chegou em 23 de abril às 11h30 da manhã, quando o Hubstaff me pegou fazendo um treino pela internet. Quando percebi que não havia desconectado, o programa já tinha capturado uma tela da personal trainer dando aula na sala de estar da casa dela.Mesmo que tenha sido só um experimento, não deixou de ser embaraçoso e invasivo. Vai muito além de ser pego malhando no meio do dia. E se outras capturas de tela expusessem informações confidenciais sobre suas finanças ou sua saúde?

Confio na Pui-Wing, mas os sistemas de monitoramento têm poucas salvaguardas para evitar abusos e dependem do juízo e da discrição dos gerentes.

Pui-Wing: Felizmente, não vi Adam malhando pela internet. Depois de vasculhar as métricas do Hubstaff, ficou claro que o programa não tinha capturado os momentos em que ele estava pesquisando ou falando com fontes. Era, portanto, irrelevante – pelo menos para a forma como trabalhamos.

Além disso, foi muito desagradável ver tantas informações a respeito de alguém. Não voltei a entrar no programa. Às vezes, eu dava uma olhada nos emails diários que o Hubstaff enviava sobre Adam. Eles mostravam que sua pontuação de produtividade girava em torno de 30%, às vezes chegando a 50%. Dei risada quando percebi que ele começou a passar mais tempo em sites de notícias à medida que seu comportamento mudou.

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Adam: No final, me vi tentando enganar o sistema da Hubstaff. Enquanto escrevo estas palavras, às 11h38 do dia 24 de abril, estou prestes a tomar um café e passar um tempo com meus filhos confinados. Mas vou deixar um documento do Google Doc aberto no computador, para que o Hubstaff capture umas imagens que deem a impressão de que eu estava trabalhando. Mesmo que minha editora diga que não está olhando. Sabe como é, só para garantir. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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