Como o Internet Archive virou uma improvável alternativa ao Spotify

Criado em 1996 para ser uma espaço de memória da internet, serviço evoluiu como um lugar para escutar música na rede; acervo vai de Carmen Miranda a Nirvana

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Por Bruno Romani
Atualização:
Nirvana, de Kurt Cobain,é uma das bandas com vasto acervo de shows no Internet Archive; serviço virou uma alternativa para escutar música na web Foto: Masao Goto/AE

Com 82 milhões de músicas, o Spotify se tornou um lugar onde é difícil não encontrar aquilo que se deseja escutar - e o número se repete nas plataformas rivais, como Apple Music, Amazon Music, Deezer e Resso. Esses acervos, porém, têm brechas - e um improvável espaço online vem tirando vantagem disso. Dono de uma interface caótica e livre de algoritmos, o Internet Archive (IA) se tornou um dos mais alternativos e ricos espaços para ouvir e pesquisar música na internet - lá estão desde discos de Carmen Miranda a mixtapes do hip-hop. 

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Não era exatamente essa a missão do serviço. Fundado em 1996 pelo engenheiro da computação Brewster Kahle, o Internet Archive é uma organização sem fins lucrativos que visa a dar “acesso universal a todo conhecimento já produzido”. Na prática, o IA virou o grande repositório da memória na rede - sua ferramenta mais famosa é o Wayback Machine, o robozinho que “tira fotos” de páginas da web e que preserva boa parte daquilo que já morreu na internet. Atualmente, o serviço guarda 625 bilhões de páginas da web. 

Com o tempo, o IA começou a arquivar transmissões de TV, vídeos, programas de rádio e livros - boa parte do material estava em mídia analógica e foi digitalizada. Em 2002, foi a vez de a música ganhar espaço. “Alguns amigos me procuraram para dizer que a comunidade de ‘tapers’ dos anos 1970 (pessoas que gravavam shows de maneira não-oficial) ainda estava ativa, mas não tinham onde guardar o material”, relembra Kahle ao Estadão.

“Procuramos o Etree, grupo fãs de música que registrava e distribuía shows gravados, e oferecemos a eles espaço ilimitado eterno. Eles não acreditaram, mas era verdade. Assim, nasceu a coleção de música ao vivo, a primeira do IA”, conta Kahle. Com o surgimento da coleção, a instituição abriu as portas para que qualquer artista, famoso ou desconhecido, postasse shows. A ideia ganhou fôlego quando o Grateful Dead, uma das principais bandas do rock psicodélico dos anos 1970, resolveu disponibilizar suas milhares de apresentações no serviço - o grupo de Jerry Garcia era conhecido por incentivar gravações e trocas de fitas entre os fãs.

Com o tempo, fãs de outros artistas passaram a postar apresentações por lá. É possível, por exemplo, encontrar muitos shows de toda a carreira do Nirvana, do final dos anos 1980 aos últimos dias da banda em 1994. Há também muitos registros em áudio das turnês do Radiohead em sua fase “de ouro”, entre o final dos anos 1990 e o começo dos anos 2000. Hoje em dia, o serviço abriga 240 mil shows de 8 mil artistas - tudo pode ser ouvido ou baixado gratuitamente.

A documentação musical ganhou corpo ao longo dos anos: fãs de hip-hop, por exemplo, passaram a postar “mixtapes” no serviço. As fitas (ou CDs) são o material fundamental pelo qual DJs, rappers e MCs transitam seus trabalhos no underground - sem elas, não haveria a popularização do movimento no mundo. A coleção de mixtapes do IA inclui nomes famosos, como Eminem, Travis Scott e Lil Wayne. São mais de 13 mil mixtapes em apenas uma das coleções. 

Kahlen, fundador do Internet Archive, adora a coleçãode discos de 78 RPM presente no serviço Foto: Divulgação/Internet Archive

Meninas dos olhos

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Em termos de música, porém, a menina dos olhos de Kahle é bem mais antiga. Em 2017, o IA passou a digitalizar cilindros fonográficos e discos de 78 rotações por minuto (RPM), tecnologias anteriores ao disco de vinil. “Adoro os 78 RPM. Outro dia, durante uma festa de Mardi Gras, toquei uns discos de dixieland de Nova Orleans”, conta ele, referindo-se ao estilo musical.

A empolgação dele se explica além do carnaval da região sul dos EUA. Os discos de 78 RPM foram a principal maneira de escutar música gravada até a década de 1950. Estima-se que, só no mercado americano, tenham sido lançados 3 milhões de discos - era o Spotify da época. Assim, os cerca de 330 mil cilindros e 78 RPM do IA registram gravações entre 1898 e 1950 de estilos variados: jazz, blues, gospel e ritmos regionais. É possível, inclusive, encontrar discos de Carmen Miranda a partir do final dos anos 1930 (ouça mais abaixo). Outra atração são os discos da década de 1950 de Sister Rosetta, pioneira do blues e do rock. 

O IA passou a receber doações de instituições, como a Biblioteca Pública de Boston, e desenvolveu um processo de digitalização com quatro tipos diferentes de agulha ao mesmo tempo - isso é necessário porque agulhas captam frequências sonoras diferentes, dando características únicas a cada gravação. Cada disco é disponibilizado online em quatro captações diferentes. 

Contramemória

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Ao todo, o IA tem cerca de 14 milhões de músicas, quase nenhuma disponível nas plataformas do momento, o que lhe confere algumas características especiais, segundo especialistas. 

“O IA é um espaço de ‘contramemória’, dando uma visão alternativa àquilo que as grandes plataformas ofecerem”, argumenta Thiago Pereira, pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Culturas Urbanas e Tecnologias da Comunicação (Labcult) da Universidade Federal Fluminense. Segundo ele, os acervos de serviços populares, como Spotify, ganham aura de “história oficial” da música - e aquilo que fica de fora acaba sendo apagado. 

Kahle sempre repete que aquilo que não está online não existe. Mas prefere chamar sua criação de “a biblioteca da cauda longa”. Ou seja, o lugar que guarda e disponibiliza material nichado, que passa longe de movimentar grandes grupos de pessoas. 

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Para ele, é importante manter essa postura: o IA já teve problemas judiciais com grandes editoras americanas por digitalizar e disponibilizar livros que ainda fazem parte dos seus interesses comerciais - precisou tirar do ar parte do material. Repetir a disputa com as gravadoras, que depois de anos conseguiram estabelecer um modelo rentável de música digital, não seria bom negócio para o projeto. 

A interface do site e o seu sistema de buscas indicam que os recursos do IA, provenientes de doações, são limitados. À reportagem, Kahle chamou o site de “não muito bom” e afirmou que gostaria de ferramentas comuns a outros sites de busca, como um sistema de recomendação e uma camada de rede social, que permitisse fazer amizades com base no gosto musical. “O IA tem aquele ar de ‘biblioteca’, de tudo ser mais formal e mais difícil de navegar”, diz Gustavo Fisher, professor do programa de pós-graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos. “Por isso, ninguém deixaria de assinar um Spotify para ficar apenas no IA”. 

No que depender de Kahle, o IA continuará como via alternativa. “Para o futuro do serviço, em termos de música, meu sonho é que o sistema de bibliotecas financie artistas locais e independentes. A gente compraria o material. Veja bem, não estou falando de licenciamento. Estou falando de compra física. Esse dinheiro iria para os artistas e o IA disponibilizaria os trabalhos”, diz ele. “Não estou nem aí para David Bowie, ou qualquer outra coisa popular. Eu me interesso pelo moleque da rua de trás tocando agora na garagem”. 

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