Guerra na Ucrânia interrompeu expansão da indústria de tecnologia no Leste Europeu

Após o fim da União Soviética, a Internet se tornou a cola que uniu os países, que viraram casa de alguns dos melhores programadores do mundo

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Por Jeanne Whalen
Atualização:
Startups de tecnologia do Leste Europeu tentam sobreviver em meio à guerra na Ucrânia Foto: Reuters

Até algumas semanas atrás, a startup de software de Jacob Udodov era um símbolo da promissora economia de tecnologia do leste europeu.

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De sua sede na Letônia, ele montou uma equipe de desenvolvedores na Ucrânia e na Rússia que provava como a indústria de tecnologia pode trabalhar perfeitamente de qualquer lugar; segundo Udodov “sem ficar presa a nenhum local”. 

Tudo isso mudou às 8h da manhã do dia 24 de fevereiro, quando sua esposa o sacudiu para acordá-lo e dizer que bombas russas estavam caindo sobre a Ucrânia. Udodov foi correndo abrir o grupo de mensagens de bate-papo da empresa e encorajou os programadores ucranianos a irem para o oeste, para um local mais seguro.

“Meus funcionários me enviaram um mapa do bombardeio aéreo”, lembrou Udodov em uma recente entrevista. Ele mostrava ataques por todo o país, de Lviv a Kharkiv. “Eles me enviaram esse mapa e disseram que ‘não há lugar seguro na Ucrânia’.”

Pouco mais de um mês depois, os funcionários ucranianos de sua startup, a Bordio, estão se refugiando em abrigos antibomba, sofrendo com cortes de eletricidade e de acesso à Internet, e se despedindo dos familiares conforme a população civil se dispersa para escapar das tropas russas.

Dois dos programadores russos da Bordio fugiram de seu país assustados com a ação militar da Rússia e a nova tendência autoritária do governo, enquanto aqueles que permanecem no país estão tendo dificuldades para receber seus salários em meio às sanções bancárias do Ocidente.

Descendente de russos, mas nascido e criado na Lituânia, Udodov está tentando desesperadamente lidar com tudo isso.

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“Hoje, temos seis funcionários presos em um país onde acontece uma guerra”, disse. “Eles não podem trabalhar de forma produtiva, nem sair do país. Como empregador, não posso demiti-los, porque isso seria um desastre para eles. Não há outra solução a não ser esperar até que a guerra acabe.”

Internet no Leste Europeu

A situação da Bordio é apenas um exemplo de como a invasão russa da Ucrânia está ameaçando a modernidade digital que criou raízes em grande parte da antiga União Soviética. Nos anos seguintes à dissolução da União Soviética em 1991, a Internet se transformou na cola que ajudou a unir países e pessoas que, não fora isso, talvez estivessem divididos por tensões políticas. Mesmo na Rússia, apesar de um longo período de movimentação gradual em direção ao autoritarismo, os jovens se acostumaram a se conectar com o resto do mundo via Facebook, Instagram e outros aplicativos ocidentais.

O renascimento digital ajudou alguns dos melhores programadores do mundo a superar as economias problemáticas de seus países e encontrar trabalho com salários bem maiores do que ganhariam de outra maneira. Há mais de um milhão de profissionais de TI na Rússia, Ucrânia e em Belarus, cerca de um quarto deles trabalham para empresas de terceirização de serviços que atendem clientes fora da região, de acordo com a Gartner, empresa de pesquisa e consultoria.

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Grande parte dessa rede digital está se fragmentando agora, conforme a Rússia interrompe o acesso às mídias sociais e sites de notícias ocidentais e ataca seu vizinho com um bombardeio implacável. Em entrevista ao Washington Post, os funcionários da Bordio relataram o tumulto e a angústia que o conflito trouxe para suas outrora vidas estáveis.

Vitaliy, designer de software da Bordio na região de Kherson, na Ucrânia, estava tentando trabalhar em uma recente tarde de quinta-feira sem eletricidade ou acesso à Internet. Há poucos dias, dois helicópteros russos foram abatidos no céu perto da pequena cidade onde ele vive, no Mar Negro, e uma forte explosão foi sentida tão próximo dele que fez sua cama vazia saltar do chão, disse o homem de 29 anos em uma entrevista por telefone. 

Nos primeiros dias da guerra, ele e sua namorada dormiram vestidos para sair, caso precisassem fugir. No começo, o exército russo costumava por sua cidade, Skadovsk, a caminho da vizinha Kherson, um importante campo de batalha. Mas, agora, os soldados russos com uma “enorme quantidade de equipamentos” entraram em Skadovsk e tomaram vários acampamentos na costa, normalmente usados por crianças no verão, disse Vitaliy, que pediu para ser identificado apenas pelo primeiro nome por receios com sua segurança.

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“Eles estavam tentando assustar as pessoas disparando para o ar ontem”, disse ele. O exército russo também sequestrou o prefeito da cidade e seu vice. Posteriormente o prefeito foi libertado, mas não o vice, disse o prefeito Oleksandr Yakovlev em um vídeo publicado no Facebook.

Vitaliy e sua namorada não têm acesso a um abrigo antibombas subterrâneo, então, quando ouvem explosões, eles se escondem em um cômodo dentro de casa, longe das janelas. Produtos lácteos e enlatados estão desaparecendo dos mercados locais, e todas as rotas de fuga para fora da cidade estão bloqueadas pelo exército russo.

Vitaliy disse que está tentando trabalhar offline, enviando rapidamente o que consegue fazer quando a Internet volta a funcionar. Mas, no geral, “eu nem sei o que fazer”, disse Vitaliy. “Sinceramente, estou com medo por mim e por meus entes queridos. Não é normal, em pleno século 21, que as pessoas corram por aí e atirem umas nas outras com metralhadoras.”

Sua colega, Anastasiia Kvitka, 32 anos, tentou ficar em casa, na cidade de Zaporizhzhia, na Ucrânia, durante os primeiros dias da guerra, mas ficava cada vez mais apreensiva conforme os tanques e o exército russo avançavam. Então, os bombardeios russos atingiram uma usina nuclear próxima, fazendo com que ela pegasse fogo.

“Foi absolutamente aterrorizante, por isso fui para Dnipro”, uma cidade a cerca de 90 minutos ao norte dali, disse. Ela e o marido deixaram uma chave com um vizinho e levaram apenas pertences essenciais e o gato deles. Eles tiveram a sorte de encontrar um apartamento temporário com a ajuda de amigos e conseguiram se instalar e trabalhar um pouco, mas ainda há bombardeios aéreos em Dnipro que os obrigam a correr para um abrigo antibombas. A Internet muitas vezes é cortada, disse ela.

Anastasiia também se preocupa com os pais, que decidiram ficar em Zaporizhzhia. “Eles não sabem como deixar a vida deles para trás”, disse ela. “Eles têm animais e estão com medo de ir embora.”

Multietnias

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O próprio Udodov é uma mistura de várias culturas do Leste Europeu. Ele é um cidadão letão, nascido em Riga, filho de pais russos e passou parte de sua infância em Belarus, onde o pai começou um negócio de venda de bolos. Ele voltou para a Letônia aos 11 anos e fez o ensino médio em Riga antes de criar sua primeira empresa, uma agência de marketing digital. Em 2019, fundou a Bordio, que produz software para colaboração em equipe e gestão de projetos.

Na hora de contratar desenvolvedores, ele procurou pelos profissionais na Rússia e na Ucrânia porque os melhores programadores de lá recebem salários mais baixos que seus colegas na União Europeia.

A equipe multiétnica que ele montou era unida, disse. Nos primeiros dias da guerra, seus funcionários russos no grupo de mensagens de bate-papo da empresa disseram aos ucranianos que “eles sentiam muito e estavam envergonhados pelas ações do país deles. (...) Era óbvio que em nossa empresa ninguém apoiava a invasão russa”, disse Udodov.

As sanções ocidentais tornaram mais difícil para a Bordio pagar seus funcionários que permanecem na Rússia, disse Udodov. No início de março, ele teve dificuldades para encontrar um banco ocidental que transferisse dinheiro para contas bancárias russas. No fim, encontrou um que estava disposto a fazer isso, desde que ele mostrasse documentos que confirmassem a legalidade das transferências, mas Udodov não está seguro se isso funcionará no próximo mês, afirmou. 

Dois dos funcionários russos da Bordio decidiram deixar o país por causa da guerra, disse Udodov – um foi para a Geórgia e outro para o Reino Unido. Apenas aquele que foi para a Geórgia concordou em dar entrevista, mas pediu para seu sobrenome não ser mencionado.

Aleksandr, um jovem de 27 anos de Moscou, disse que foi apenas uma coincidência ele e a esposa estarem viajando para a Geórgia de férias no dia em que a invasão começou. Em pouco tempo, eles decidiram permanecer lá indefinidamente, disse ele. 

Eles passaram os primeiros dias da guerra em um hotel na capital, Tbilisi, e – cientes de que não voltariam para casa – abriram uma conta bancária por lá, pela qual ele está recebendo seu salário. As sanções ocidentais e a decisão de grandes empresas de cartão de crédito de cortar os laços com a Rússia fizeram com que seus cartões para acessar as contas bancárias russas não funcionassem mais e ele perdeu o acesso à sua poupança no país, afirmou.

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Segundo Aleksandr, eles não sabem quanto tempo ficarão na Geórgia, mas esperam que a guerra acabe em breve e com uma vitória ucraniana. 

O casal encontrou um apartamento para alugar, mas conforme mais russos se mudam para o país, os georgianos estão ficando mais cautelosos com os recém-chegados, disse ele. Alguns bancos da Geórgia começaram a negar contas aos russos, e está se tornando mais difícil para muitos encontrar um lugar para viver.

“Muitos georgianos suspeitam que muitos deles [russos] não estão fugindo do que Putin faz, mas das sanções econômicas”, disse Aleksandr. Os georgianos, que já sofreram com uma invasão por tropas russas em 2008, acham que alguns russos “vão viver aqui e ainda apoiarão o que está acontecendo [por lá]”, disse ele.

“Ninguém mais gosta dos russos. Basicamente é isso”, disse ele. “Os georgianos comuns não gostam nem de ver russos, dá para sentir isso.”

Em uma pequena cidade no oeste da Ucrânia, outro programador da Bordio, Aleksandr Pashkov, está vivendo em um hostel com outras sete pessoas no quarto. Ele e sua família fugiram para lá no primeiro dia da guerra, depois que bombas começaram a cair em sua cidade natal, Kharkiv, a segunda maior cidade do país e uma das primeiras a ser sitiada pelo exército russo.

“Apesar de eu ser um homem e dever tratar tudo isso com firmeza, bem, naquela manhã, quando acordei com as explosões em minha cidade, subi para o segundo andar e vi como os mísseis estavam voando pelo céu, enquanto meus filhos dormiam. Eu não conseguia acreditar que neste século eu podia estar vivendo assim”, disse ele. 

Eles colocaram alguns pertences no porta-malas do carro, foram ao banco e ao supermercado, onde ucranianos em pânico já estavam fazendo longas filas. Então, eles dirigiram em direção ao oeste do país durante dois dias, sem saber onde iriam parar, até finalmente chegarem ao hostel.

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Há poucos dias, ele se despediu da esposa e dos dois filhos pequenos, de 2 e 4 anos, enquanto eles se dirigiam para a fronteira com a Polônia, onde pretendiam pegar um ônibus para Portugal para ficar na casa de amigos.

Aleksandr, 33 anos, não pôde acompanhá-los, pois a Ucrânia proibiu a saída de homens de 18 a 60 anos, para o caso de o exército do país precisar deles.

As coisas estão em sua maioria tranquilas na região em que ele se encontra, no oeste da Ucrânia, exceto pela constante chegada de refugiados, disse. Aleksandr passa seus dias trabalhando em cafés ou em sua cama no hostel com seu laptop apoiado nas pernas.

Ele sente que está fazendo sua parte continuando a trabalhar enquanto muitos outros perdem o emprego. “Desenvolvo sites, pago impostos, apoio nosso exército... para ajudá-los a comprar armas”, disse ele. “Sei como fazer isso bem. Se me disserem que devo pegar uma arma e defender meu país, farei isso.”

É difícil se concentrar no trabalho, mas ele se obriga a fazer isso, afirmou, “porque ajuda a fazer desaparecer os pensamentos estranhos que vêm à minha mente”. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

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