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'Mais importante lei de tecnologia no Brasil não está sendo debatida', diz especialista

Para Bruno Bioni, projeto de lei que visa a regular inteligência artificial no País foi aprovado na Câmara sem os debates necessários

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Por Bruno Romani
Atualização:
Para Bioni, Marco da Inteligência Artificial precisa de mais debate Foto: Divulgação

Apesar de o Brasil já ter aprovado vigorosas legislações sobre tecnologia, como o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), a mais importante delas corre o risco de entrar em vigor sem passar pelo mesmo nível de debate. Aprovado no final de setembro na Câmara, o Marco da Inteligência Artificial já tramita no Senado e corre o risco de ser aprovado com velocidade incomum, segundo especialistas. 

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Para Bruno Bioni, fundador e professor do Data Privacy Brasil, o tema da lei mais complexo e mais multifacetado do que qualquer outro tema de tecnologia já debatido no Brasil. Ele lembra que o potencial de impacto dos algoritmos na vida das pessoas é maior do que os temas do Marco Civil e da LGPD. Por outro lado, as duas leis foram a conclusão de um amplo debate da sociedade, o que, segundo ele, não ocorreu com a IA. Veja os principais trechos da entrevista. 

A tramitação do PL do Marco da IA tem sido feita com velocidade, segundo a visão de muitos especialistas. Como o sr. vê isso?

É problemático. Se a gente compara com outros PLs de leis que se tornaram boas leis, a gente vê um processo muito mais acelerado, no qual não foram esgotados todos os instrumentos de participação pública. Apesar desse PL ter contado com audiências públicas, a gente poderia ter tido mais tempo e o texto poderia ter sido colocado para consulta pública, que foi o que aconteceu com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e com o Marco Civil da Internet. Essas foram discussões legislativas, que, dadas suas complexidades, foram necessários anos de discussão. 

O Marco da IA tem o mesmo grau de importância da LGPD e do Marco Civil da Internet? 

Depende muito de como será o desenho final da lei. Mas, comparando com as outras duas, essa talvez seja a lei mais complexa de todas. Embora seja uma tecnologia que está ganhando dianteira e que já foi adotada no dia a dia, ela ainda vai chacoalhar muita coisa, como o setor econômico e o trabalho. Os temas das outras leis estavam mais maduros. O tema da IA ainda é bastante desafiador. Isso justifica os motivos para ter mais tempo para fazer as discussões adequadas. Quando comparamos iniciativas como essa, tanto na União Europeia quanto na América do Norte, constitui-se uma comissão de especialistas para facilitar o trabalho do parlamento. Isso não aconteceu aqui e seria bem-vindo. 

Quais os pontos mais problemáticos do texto atual? 

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Essa é uma lei excessivamente principiológica. Quando você faz uma radiografia do texto que passou na Câmara, você percebe que ele parece ser mais uma carta de intenções. O texto diz que a IA tem que ser benéfica, mas como materializo isso? Como operacionalizo? O restante do texto não tem o maquinário necessário para isso. Por exemplo: poderia existir uma sessão para falar de relatório de impacto. Mas como isso seria feito? Tem que ter deveres de transparência e direitos sobre quem será afetado, mas cadê uma sessão específica para disciplinar minimamente como isso será feito? Como será a perspectiva de regulação e controle? Poderíamos ter um conselho multissetorial para pensar política pública de maneira transversal. O conselho poderia fazer política pública e isso não está previsto no projeto de lei. 

Como a questão da responsabilidade civil está sendo tratada?

Essa é a questão mais controversa do PL. Ou seja, qual é o caminho para a responsabilização caso uma IA cause dano? O PL pretende dar uma resposta unitária para um problema multifacetado. Poderiam ter dois regimes coexistindo. Em alguns casos, um regime de responsabilidade civil subjetiva, no qual a pessoa lesada precisa comprovar algum tipo de dolo. Em outros casos, isso não faz sentido, embora seja o único modelo previsto pelo texto do PL. Em alguns casos, não precisamos comprovar culpa para ser ressarcido, pois isso seria impossível. Como você vai provar que um algoritmo está mal-calibrado? Um algoritmo que faz tradução é bem diferente daquele que conduz um processo seletivo, por exemplo. 

Quem será impactado pelo avanço da IA? 

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Esse é um tema que não afeta apenas a indústria de tecnologia. Afeta questões do agronegócio. Afeta o setor financeiro. Afeta a perspectiva do meio ambiente, no qual você pode ter algoritmos para tentar entender como estão ocorrendo as mudanças climáticas. É um tema mais complexo e mais multifacetado do que qualquer outro tema de tecnologia que a gente já debateu no Brasil. É mais do que a LGPD, porque a IA não lida apenas com dados pessoais, mas com dados. É mais do que o Marco Civil da Internet, porque os sistemas de IA rodam online e offline. 

Além disso, a IA já faz parte do nosso dia a dia: quando você pede crédito no banco, é um algoritmo que calcula a sua nota. Quando você participa de um processo seletivo, a primeira filtragem normalmente quem faz é um algoritmo. Mais recentemente, estamos vendo a tecnologia sendo aplicada na segurança pública, com reconhecimento facial. Então, você pode ser abordado ou não como resultado de cálculo de um algoritmo. Precisamos garantir que os julgamentos feitos a respeito da vida das pessoas sejam feitas de maneira correta.

Como as discussões internacionais sobre transparência de algoritmos afetam o Marco da IA?

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Temos que nos valer dos aprendizados positivos das discussões que já tivemos no Brasil. A gente simplesmente não copiou e colou uma legislação ou proposta de regulação vindo de Europa ou EUA. A gente precisa entender como as questões acontecem no contexto brasileiro. Por isso precisamos de tempo. 

Parte da indústria e de pesquisadores afirma que regulação no atual estágio da IA inibe o desenvolvimento da tecnologia. O sr. concorda?

Discordo completamente. A discussão é sobre qual o tipo de regulação iremos ter. A regulação pode ser um instrumento de inovação e não de obstáculo. Quando você estabelece direitos e deveres, os agentes econômicos tendem a causar menos danos e você passa a confiar nas trocas econômicas. É aquilo que economistas chamam de externalidade positiva. 

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