MP de Bolsonaro reduz independência das redes sociais e fomenta desinformação, dizem especialistas

Com medida provisória assinada na segunda-feira, fica mais restrita a moderação de conteúdo de plataformas como YouTube, Facebook e Twitter; empresas se manifestam contra

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Por Guilherme Guerra
Atualização:
Especialistas dizem que internet pode se tornar um ambiente mais 'tóxico' com a MP de Bolsonaro Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Assinada pelo presidente Jair Bolsonaro na segunda-feira, 6, a Medida Provisória n.º 1.068, que limita a remoção de conteúdo nas plataformas digitais, reduz a independência das redes sociais e pode fomentar a desinformação e o conteúdo de ódio na internet, segundo especialistas consultados pelo Estadão. Empresas de tecnologia como Facebook, Twitter e YouTube, do Google, manifestaram-se contra a decisão, argumentando que o poder de moderação de conteúdo fica limitado.

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A MP prevê que as plataformas digitais sejam obrigadas a tornar público os critérios para a remoção de conteúdo na internet. Até então, como intermediárias, essas companhias de tecnologia elaboravam as próprias regras de moderação, contanto que respeitassem determinações da Justiça, conforme prevê o Marco Civil da Internet, conjunto de leis aprovadas em 2015 que determina como se dá a regulação do ambiente digital no Brasil.

O governo quer, de acordo com tuíte publicado pela Secretaria de Comunicação (Secom) do Planalto, evitar a “remoção arbitrária e imotivada” de perfis e de conteúdos da internet, estando proibida a moderação ou limitação de alcance de materiais de ordem política, ideológica, científica, artística ou religiosa. Às empresas, fica o dever de justificar a remoção, mediante apresentação de justa causa e motivação, em casos específicos, como nudez, violência, assédio moral e sexual, bullying, discurso de ódio e desinformação, entre outros. 

“O efeito prático dessa medida é colocar barreiras para o exercício de atos de moderação, como suspensão ou bloqueio de perfis e remoção de conteúdos postados, por plataformas de redes sociais”, explica Bruna Santos, da Associação Data Privacy Brasil (DPBR), acrescentando que as políticas de detecção e combate a conteúdos abusivos criadas pelas empresas de tecnologia se tornam uma atividade mais demorada e onerosa. “O texto transforma as redes sociais em espaços ainda mais homogêneos, inóspitos e tóxicos, porque tais empresas não poderão mais realizar controle de spam ou de vendas de armas, por exemplo, sem atender o requerimento de justa causa e motivação.”

Para o advogado Caio Machado, diretor executivo do Instituto Vero, a MP tem o impacto de tornar a internet um lugar “mais desagradável e até mais tóxico, porque vai ser comum encontrar perfis fazendo ameaças, agressões e insultos por razões de raça e gênero”. “A medida tira a moderação de conteúdo por completo”, aponta.

Em posicionamento enviado ao Estadão, as empresas de tecnologia manifestaram-se contra a Medida Provisória, que tem vigência imediata após a publicação no Diário Oficial da União (DOU) e precisa ser aprovada pelo Congresso em até 120 dias — do contrário, pode caducar e perder validade.

O Facebook, empresa dona também do Instagram e WhatsApp, afirma que “concorda com a manifestação de diversos especialistas e juristas, que afirmam que a proposta viola direitos e garantias constitucionais.”

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Já o Twitter considerou a alteração “muito preocupante” e diz que a MP propõe uma “lista exaustiva” sob a qual as empresas devem agir. “Ao focar em uma lista finita e fechada de casos e ocasiões, a lei ignora o dinamismo fundamental e inerente ao processo de moderação de conteúdo cujo objetivo é manter uma conversa pública saudável”, explica, em nota.

Para exemplificar, a rede social dá um exemplo: a política interna do Twitter contra as informações enganosas sobre covid poderia ser questionada pelo governo brasileiro, já que esse tipo de assunto não é abordado na MP. “Regulações ocasionais e granulares que fazem frente a determinados conteúdos são inviáveis para proteger a integridade do debate público e das pessoas que fazem parte dele”, conclui.

O YouTube, plataforma do Google, informa que ainda analisa os impactos da MP, mas acrescenta que as políticas internas da empresa “são resultado de um processo colaborativo com especialistas técnicos, sociedade civil e academia”. “Nós continuaremos trabalhando para demonstrar a transparência e a importância das nossas diretrizes e os riscos que as pessoas correm quando não podemos aplicá-las”, declarou.

Na noite de segunda, o PSB foi ao Supremo Tribunal Federal com uma ação para barrar a MP, sob o argumento de que a medida mina os esforços do Judiciário e do Legislativo em combater a desinformação na internet.

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Redes sociais podem se ‘empoderar’

A advogada Flávia Lefèvre, especialista em Direito Digital e integrante do coletivo Intervozes, observa que a MP de Bolsonaro “pode ser um tiro pela culatra”, porque as medidas consideradas como passíveis de justa causa podem ser aplicadas a conteúdos como desinformação ou incitação à violência, por exemplo.

“O presidente Jair Bolsonaro publicou a MP com o objetivo de restringir o poder das plataformas, mas, na realidade, ele as está empoderando, porque são elas quem vão passar a fazer o juízo sobre essas hipóteses de remoção ou não”, diz. A advogada exemplifica: “Se alguém estimula as pessoas a não tomarem vacina e a tomarem remédios que não têm eficácia comprovada, isso compromete o direito das crianças e dos adolescentes.”

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Como resultado, o impacto disso é um “caos informacional” na internet. “Algumas questões que deveriam ser examinadas pelo Judiciário poderão ser agora avaliadas pelas plataformas, que serão quem vão analisar se algo afeta ao Estatuto da Criança e do Adolescente, se é incitação à violência ou se viola algum direito autoral”, declara Flávia.

‘Timing’

Para os especialistas, existe um “timing” para a assinatura da MP nº 1.068: as manifestações de 7 de Setembro. “Efetivamente, as mobilizações para um dia como hoje teriam de ficar online e ponto final”, afirma Caio Machado, do Instituto Vero. Ameaças à democracia, incitações à violência e notícias falsas podem ter de permanecer online. “A ideia é que todo esse tour de force do feriado e essas convocações fiquem no ar e não possam ser removidos”, observa. 

Outro possível efeito é impedir que perfis de aliados sejam removidos da plataforma - o exemplo mais extremo disso foi o banimento do ex-presidente americano Donald Trump de todas as plataformas, após os protestos em Washington, em janeiro passado. 

“O Bolsonaro está instaurando o caos para se blindar e impedir que os conteúdos, canais e perfis da sua base política sejam excluídos e restringidos”, aponta Flávia.

“O timing é crucial para entender essa MP”, diz Machado.

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