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Será que um computador consegue elaborar uma ‘teoria de tudo’?

Pode ser possível, dizem os físicos, mas não é para já. E não há garantia de que nós, humanos, entenderemos o resultado

Por Dennis Overbye
Atualização:
A Teoria de Tudo ainda não está ao nosso alcance, mas as máquinas estão realizando muitas tarefas de nossas vidas Foto: Alex Eben Meyer/The New York Times

Certa vez, Albert Einstein descreveu as teorias científicas como “invenções livres da mente humana”. Mas, em 1980, Stephen Hawking, o renomado cosmologista da Universidade de Cambridge, teve outra ideia. Em uma palestra naquele ano, ele argumentou que a chamada Teoria de Tudo poderia ser alcançável, mas que os retoques finais provavelmente seriam feitos por computadores. “Pode não ser o fim para a física teórica”, disse ele. “Mas pode ser o fim para os físicos teóricos”.

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A Teoria de Tudo ainda não está à vista, mas com os computadores assumindo muitas das tarefas da vida – traduzir línguas, reconhecer rostos, dirigir carros, recomendar quem namorar – não é assim tão maluco imaginá-los como substitutos dos Hawking e Einstein do mundo.

Programas de computador como o AlphaGo da DeepMind continuam descobrindo novas maneiras de derrotar humanos em jogos como Go e xadrez, os quais vêm sendo estudados e jogados há séculos. Por que uma dessas maravilhosas máquinas de aprendizagem não seria capaz de vasculhar um enorme catálogo astronômico ou os petabytes de dados compilados pelo Grande Colisor de Hádrons? Ou discernir um conjunto de novas partículas fundamentais? Ou descobrir um buraco de minhoca para outra galáxia fora do sistema solar, como o do filme Interestelar?

Pelo menos este é o sonho. Pensar o contrário é se apegar ao que o físico Max Tegmark chama de “chauvinismo do carbono”. Em novembro, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), onde Tegmark é professor, descontou um cheque da National Science Foundation e abriu as portas metafóricas do novo Instituto de Inteligência Artificial e Interações Fundamentais.

O instituto é um dos sete criados pela fundação e pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos como parte de um esforço nacional para galvanizar o trabalho em inteligência artificial. Cada um receberá US$ 20 milhões em cinco anos. O instituto baseado no MIT e dirigido pelo físico de partículas Jesse Thaler é o único especificamente dedicado à Física. Tem mais de duas dezenas de cientistas, de todas as áreas da ciência de Newton e Einstein, vindos de instituiçõees como MIT, Harvard, Northeastern University e Tufts.

“O que espero é criar um lugar onde pesquisadores de vários campos diferentes da física, bem como pesquisadores que trabalham com ciência da computação, aprendizado de máquina ou inteligência artificial, possam se reunir e dialogar e ensinar coisas uns aos outros”, disse Thaler, durante uma chamada pelo Zoom. “Em última instância, quero ter máquinas que consigam pensar como um físico”.

Redescobrindo as leis fundamentais

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Sua ferramenta nessa empreitada é um tipo de inteligência artificial conhecido como rede neural. Ao contrário dos chamados sistemas especialistas, como o Watson da IBM, que são carregados com conhecimento humano e científico, as redes neurais são projetadas para aprender à medida que avançam, da mesma forma que o cérebro humano. 

Ao analisar grandes quantidades de dados em busca de padrões ocultos, elas rapidamente aprendem a distinguir cães de gatos, reconhecer rostos, replicar a fala humana, sinalizar suspeitas financeiras e muito mais. “Queremos descobrir todos os tipos de novas leis da física”, disse Tegmark. “Já vimos que a máquina pode reconhecer as leis da física”.

No ano passado, no que era uma espécie de prova de conceito, Tegmark e um aluno, Silviu-Marian Udrescu, pegaram 100 equações de física de um livro famoso – The Feynman Lectures on Physics, de Richard Feynman, Robert Leighton e Matthew Sands – e as usou para gerar dados que então alimentaram uma rede neural. O sistema analisou os dados em busca de padrões e regularidades e reencontrou todas as 100 fórmulas.

“Assim como um cientista humano, a máquina tenta muitas estratégias diferentes (módulos)”, escreveram os pesquisadores em um artigo publicado no ano passado na Science Advances. “E, se não consegue resolver o problema completo de uma só vez, ela tenta transformá-lo e dividi-lo em partes mais simples que podem ser tratadas separadamente, reiniciando o algoritmo completo em cada parte”.

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Em outro experimento mais desafiador, Tegmark e seus colegas mostraram à rede um vídeo de foguetes voando e pediram para ela prever o que aconteceria de um quadro para o outro, sem dar importância para as palmeiras ao fundo. “No fim das contas, o computador conseguiu descobrir as equações essenciais da cinética”, disse ele.

Encontrar novas partículas em um lugar como o Grande Colisor de Hádrons do CERN seria uma tarefa fácil, disse Tegmark: a inteligência artificial gosta de big data, e os dados do colisor chegam a milhares de terabytes por segundo. Pouco importa que uma nova partícula não tenha aparecido nos dados do CERN desde a descoberta do bóson de Higgs em 2012, apesar de anos de análises frenéticas do fluxo de dados de cada colisão. “Estas são curvas para as quais os humanos olham”, disse Tegmark. “Em 10 anos, o aprendizado de máquina será tão essencial para fazer física quanto a matemática”.

Por enquanto, admitiu ele, há limites para o que pode ser alcançado pelo método de resolução de problemas do algoritmo, uma prática conhecida como regressão. Embora a máquina possa reencontrar em uma pilha de dados as leis fundamentais da física, ela ainda não consegue apresentar os princípios profundos – como a incerteza quântica na mecânica quântica, ou a relatividade – que estão por trás dessas fórmulas.

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“Quando a inteligência artificial volta e lhe diz essas coisas, quer dizer que já alcançamos a inteligência artificial geral, e você pode ficar muito assustado ou muito animado, dependendo do seu ponto de vista”, disse Tegmark. “A razão pela qual estou trabalhando nisso, falando francamente, é porque o mais ameaçador, para mim, seria construirmos uma inteligência artificial superpoderosa e não termos ideia de como ela funciona”.

‘Um diálogo entre o humano e a máquina’

Thaler, que dirige o novo instituto no MIT, disse que já foi cético em relação à inteligência artificial, mas agora é um entusiasta. Ele percebeu que, como físico, poderia codificar parte de seu conhecimento dentro da máquina, que lhe daria respostas as quais ele poderia interpretar com mais facilidade.

“Tudo vira um diálogo entre o humano e a máquina, de um jeito que deixa tudo mais emocionante”, disse ele, “em vez de apenas ter uma caixa preta que você não entende tomando decisões por você. Não gosto de chamar essas técnicas de ‘inteligência artificial’, porque essa linguagem mascara o fato de que muitas técnicas de inteligência artificial têm bases rigorosas na matemática, na estatística e na ciência da computação”.

Sim, observou ele, a máquina pode encontrar soluções muito melhores do que ele, apesar de toda a sua formação: “Mas, no final das contas, ainda consigo decidir quais objetivos concretos valem a pena alcançar e posso mirar objetivos cada vez mais ambiciosos, sabendo que, se eu consigo definir meus objetivos com rigor numa linguagem que o computador entenda, então a inteligência artificial pode fornecer soluções poderosas”.

Recentemente, Thaler e seus colegas alimentaram sua rede neural com um tesouro de dados do Grande Colisor de Hádrons, que esmaga prótons em busca de novas partículas e forças. Os prótons, blocos de construção da matéria atômica, são eles próprios amontoados de partículas menores chamadas quarks e glúons. Quando os prótons colidem, essas partículas menores se esguicham em jatos, junto com quaisquer outras partículas exóticas que se aglutinavam com a energia da colisão. Para entender melhor esse processo, ele e sua equipe pediram ao sistema para distinguir entre os quarks e os glúons nos dados do colisor.

“Nós dissemos: ‘Não vamos falar nada sobre a teoria quântica de campos; não vamos dizer o que é um quark ou glúon num nível fundamental’”, disse ele. “Vamos só dizer: ‘Aqui está uma confusão de dados, separe tudo em basicamente duas categorias’. E ele consegue fazer isso”.

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Ou seja, o sistema identificou e distinguiu com sucesso quarks e glúons, sem nunca saber o que eram. Se você perguntar ao sistema se existe um terceiro tipo de objeto nos dados, disse Thaler, ele começa a descobrir que os quarks não são uma partícula única, mas existem em tipos diferentes – os chamados up-quarks e down-quarks.

“E aí a máquina começa a aprender conforme você dá mais flexibilidade para explorar”, disse ele. “A máquina ainda não conhece a teoria quântica de campos, mas sabe procurar padrões. E fiquei chocado quando vi que ela tinha conseguido encontrar esse padrão”. O trabalho, acrescentou ele, ajudaria os físicos do colisor a desvendar seus resultados.

Em um momento da conversa pelo Zoom, Thaler exibiu o que chamou de “um desenho meio bobo” da rede neural que fora usada no projeto quark-glúon. Parecia uma pilha de elásticos multicoloridos, mas representava várias camadas de processamento, envolvendo cerca de 30 mil nós, ou “neurônios”, onde as informações eram coletadas e transmitidas.

“É o tipo de rede que você poderia gerar no seu laptop, se esperasse tempo suficiente”, disse ele.

O começo de algo quântico

“Uma das razões pelas quais a inteligência artificial teve tanto sucesso na resolução de jogos”, disse Thaler, “é que os jogos têm uma noção de sucesso muito bem definida”. Ele acrescentou: “Se conseguíssemos definir o que significa sucesso para as leis físicas, seria um avanço incrível”.

“Daqui a cinco ou dez anos, vou querer estar exatamente onde você quer chegar: aqui estão os dados, aqui está um kit de ferramentas, encontre a equação que eu poderia colocar numa camiseta, a equação que substitui o modelo padrão da física de partículas. Qual é a equação que substitui a relatividade geral de Einstein?”.

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Alguns físicos acham que o próximo grande salto virá com o advento da inteligência artificial nos computadores quânticos. Ao contrário dos computadores clássicos, que manipulam bits que podem ser 1 ou 0, os chamados qubits dos computadores quânticos podem ser os dois ao mesmo tempo. De acordo com a física quântica, é assim que as partículas elementares se comportam nas menores escalas da natureza, o que permite que os computadores quânticos processem grandes quantidades de informações simultaneamente.

‘É só um algoritmo em execução’

Até onde isso pode ir? Depende de para quem você pergunta. Uma máquina poderia produzir os princípios obscuros e não intuitivos da teoria quântica, ou os baluartes da relatividade de Einstein? Poderia produzir uma teoria que nós, humanos, não conseguiremos compreender? Poderíamos acabar na Matrix ou em um mundo dominado pela SkyNet, como na franquia ‘Exterminador do Futuro’?

Perguntei a uma amostra aleatória de físicos teóricos se eles estavam prontos para serem substituídos. “O jeito como você está perguntando aumenta a confusão”, disse Jaron Lanier, engenheiro de computação que agora trabalha com a Microsoft. O campo da ciência da computação, disse ele, está repleto de exageros românticos sobre o poder e a ameaça das máquinas superinteligentes.

“Podemos formular uma pergunta de maneira que possamos fazer a computação?”, ele perguntou. “Tire o romantismo do caminho. Não é uma criatura, como um gato. É só um algoritmo em execução”.

Steven Weinberg, ganhador do Nobel e professor da Universidade do Texas em Austin, caracterizou como “um pensamento preocupante” a possibilidade de os humanos não serem inteligentes o bastante para entender a Teoria de Tudo. “Mas suspeito que, nesse caso”, escreveu ele por e-mail, “também não seremos inteligentes o suficiente para projetar um computador que consiga encontrar uma teoria suprema”.

Lisa Randall, física de Harvard, escreveu: “Posso imaginar computadores encontrando equações ou relações que não sabemos como interpretar. Mas isso não é muito diferente das muitas medições que ainda não conseguimos explicar”.

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Nima Arkani-Hamed, teórica do Instituto de Estudos Avançados de Princeton, New Jersey, questionou a ideia de que o computador descobriria algo profundo demais para ser compreendido pelos humanos: “Isso não reflete o que vemos no caráter do leis da natureza, o que viemos a enxergar ao longo dos séculos, que são leis baseadas em ideias matemáticas mais profundas e mais simples, embora mais abstratas”.

Se Isaac Newton voltasse dos mortos, por exemplo, disse Arkani-Hamed, ele não teria problemas em se atualizar sobre a física contemporânea: “Na verdade, dezenas de não-Newtons conseguem fazer isso ao longo de um período de quatro anos na graduação”.

Michael Turner, cosmologista da Kavli Foundation em Los Angeles, disse que, em última análise, não importa de onde nossas ideias vieram, contanto que tenham sido testadas em campo antes de confiarmos nelas.

“Então, de onde tiramos essas teorias ou paradigmas? Pode ser de princípios profundos – simetria, beleza, simplicidade – de princípios filosóficos, da religião ou do bêbado da esquina”, disse ele. “À medida que as máquinas se tornam mais inteligentes, podemos adicioná-las à lista de fontes”.

Edward Witten, também do Instituto de Estudos Avançados de Princeton, observou que, embora uma máquina da Teoria de Tudo ainda não exista, ela pode surgir no próximo século. “Se houvesse uma máquina que parecesse interessada e curiosa sobre física, certamente gostaria de conversar com ela”. E, sem dúvida, ela gostaria de conversar com ele. / Tradução de Renato Prelorentzou.

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