Sobrevivente da internet brasileira, Flogão chega ao fim após 15 anos

Criado em 2004, site de compartilhamento de fotos encerra as atividades nesta segunda 24; serviço ainda era utilizado por grupos específicos, como caminhoneiros

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Foto do author Bruno Romani
Por Bruno Romani e Matheus Fernandes
Atualização:
Perfil ativo do Flogão se despede da plataforma Foto: Bruno Romani/Reprodução

Um dos últimos sobreviventes da internet brasileira dos anos 2000, o site de compartilhamento de fotos Flogão chega ao fim nesta segunda, 24. Para muita gente, mais surpreendente do que o encerramento é saber que o serviço ainda existia. Embora sem a popularidade de outros tempos, quando rivalizava com o americano Fotolog, o serviço abrigou até seus últimos dias comunidades um tanto específicas: caminhoneiros, jogadores do game Tibia, apreciadores de ônibus, fãs de pipas (os pipeiros) e grupos religiosos. 

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Nem sempre foi assim. No auge, entre 2007 e 2008, o Flogão tinha 25 milhões de acessos mensais e cerca de 7 milhões de perfis — a internet brasileira na época tinha 32 milhões de pessoas. Desde o surgimento, a proposta dele era clara: focar menos nas fotos e mais no caráter de rede social que popularizou o Fotolog e o Orkut no País

“O Fotolog olhou para o Flickr para ser um repositório de fotos, mas logo foi ganhando o aspecto de rede social. Quando o Flogão chegou, olhou apenas para o lado social. A referência do Flickr não existia mais”, diz a apresentadora MariMoon. Ela não teve Flogão, mas virou celebridade digital com seu perfil no Fotolog exatamente na mesma época. Entre os famosos que tinham conta no site, está o jogador de futebol Paulo Henrique Ganso, hoje no Fluminense. 

De fato, o Flogão não poderia ser especializado em fotos como é, por exemplo, o Instagram. Pouca gente tinha câmeras digitais e os poucos celulares com câmeras tinham resoluções precárias. Era comum fazer imagens, muitas vezes borradas, com webcams acopladas no topo do monitor. O bordão do site era "O Fotolog do seu jeito". Mas, dadas as barreiras tecnológicas, poderia muito bem ter sido “O Fotolog do jeito que dá”.  

O perfil mais visitado da história do site, por exemplo, não é dedicado a imagens do seu dono. Com quase 11 milhões de visualizações, o “dirrego” é dedicado a Tibia, jogo da Cipsoft que dominou as lan houses do Brasil no mesmo período de popularidade do Flogão. 

O criador do perfil, o analista de sistemas Diego Valverde Gerolamo, de 31 anos, conta que a página era uma espécie de agregador do que acontecia nos mundos virtuais do game — histórias de amizades, de guerras e de caçadas épicas contadas por pixels quase incompreensíveis para quem não é versado no game. 

Gerolamo se tornou uma celebridade na comunidade brasileira, sendo reconhecido nas ruas e nos eventos de fãs — chegou até a dar entrevistas a veículos que cobriam o game de RPG. “Foi uma experiência legal, aprendi bastante coisa”, diz. Ele conta que parou com o Flogão para se dedicar aos estudos e ao trabalho.

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Diego Gerolamo, que tem página sobre o jogo Tibia, é o recordista de acessos do Flogão Foto: Diego Gerolamo

Um produto brasileiro

O Flogão foi criado em 2004 pelo programador carioca Cristiano Costa, e veio numa onda que era muito comum para a internet da época: versões nacionais para serviços estrangeiros que estavam bombando. Em 2005, por exemplo, o UOL lançou o UOLkut, uma rede social inspirada no Orkut, que havia estreado no ano anterior. O Flogão, claro, olhou para o americano Fotolog, que havia estreado em 2002.

O momento daquela internet, no qual serviços e plataformas não estavam consolidados entre corporações gigantescas, permitia que iniciativas individuais florescessem. “Essa internet era como a Fórmula 1 dos anos 1970: permitia que indivíduos sonhadores e com boas ideias competissem com montadoras conhecidas”, diz Alexandre Inagaki, consultor em redes sociais. “O fim do Flogão encerra de vez esse capítulo”, diz. 

Não que o Flogão não tenha tentando entrar na era dos investimentos milionários ou das fusões estratégicas.  Em 2007, a startup brasileira Power.com, que havia recebido US$ 5 milhões da firma de investimentos Draper Fisher Jurvetson, absorveu o Flogão. A companhia pertencia a um canadense chamado Steven Vachani. 

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Em português, ele disse ao Estado que pretendia atrair “as melhores mentes do País em redes sociais”. Costa e o seu Flogão agora estavam sob o guarda-chuvas de uma empresa com pompa e escritórios na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. 

O horizonte, porém, já sinalizava mudanças para o Flogão. Àquela altura, o Orkut era a principal rede social do País e o espaço para serviços alternativos estava se reduzindo. Em 2011, Vachani, que hoje mora em Miami, decidiu sair do Brasil. Costa foi dispensado da Power, o negócio foi desfeito e o Flogão voltou para as mãos de seu criador.

Era um recomeço inglório: a marca tinha perdido valor, o investimento em programação havia secado e o Facebook tinha virado a principal rede social do Brasil. Para quem só queria postar umas selfies, ostentar momentos e trocar umas ideias com os amigos já não precisava mais do Flogão. Ao site, restou a atividade dos nichos.

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Apresentadora MariMoon fez fama no Fotolog na mesma época da popularidade do Flogão Foto: MariMoon/divulgação

Criador tem vida reclusa

O programador carioca não ficou milionário, o que é difícil imaginar nos dias atuais. O Brasil conta hoje com diversas startups que se banham em aportes milionários, o que já gerou alguns unicórnios, empresas avaliadas em US$ 1 bilhão. 

Não que Costa também não tenha tentado. Em 2011, ele processou a Power pelo negócio mal sucedido, mas perdeu. Condenado a pagar as custas do processo, alegou não ter recursos. Na decisão que concedeu a gratuidade, o juiz notou que o criador do Flogão vivia de consultorias de informática esporádicas.

O programador, então, adotou uma vida reclusa — quase não há informações sobre ele nos últimos anos. A reportagem o localizou, mas ele se recusou a falar. A mesma postura tiveram as pessoas mais próximas. Ninguém queria chateá-lo com um episódio visto por eles como negativo.

De certa maneira, Costa caiu numa situação descrita por Lawrence Lessig, professor de direito em Harvard. Ele diz que, entre os pioneiros da internet, a inovação acontecia rapidamente porque ela não visava lucro rápido. Um certo caos estava à frente de qualquer modelo de negócios. 

Comunicado de despedida do Flogão Foto: Bruno Romani/Reprodução

Como o Flogão chegou a 2019 

Em uma era na qual celulares e aplicativos se tornaram norma, é difícil entender como um serviço que foi projetado para a web de 2004 e para ser consumido via desktop ou notebook possa ter durado tanto tempo. “A internet não acontece de maneira igual no Brasil. O que é febre nos grandes centros urbanos pode estar longe de acontecer em áreas mais afastadas”, explica Inagaki. “Faz muito sentido ter durado todo esse tempo, principalmente entre nichos." 

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O grupo mais resiliente do site, por exemplo, são os caminhoneiros. Os responsáveis pelo perfil “Santa Catarina Elite 101”, um dos poucos ainda atualizados, mostram o poder da ferramenta: “Nós sempre gostamos da plataforma do Flogão e vamos estar ali até o dia que o site encerrar suas atividades”. 

O perfil é administrado pelos jovens Henrique Petry Nau, Daniel Petry Nau, Leonardo Oliveira e Jaison Klein, todos de São José (SC). A página se dedica a postar fotos dos melhores caminhões que trafegam no trecho catarinense da rodovia BR-101. Eles explicam a importância dos flogueiros, como são chamados aqueles que postam no site, para a comunidade dos caminhoneiros: “Devido a tanta humilhação e preconceito que enfrentam no dia a dia, ver alguém admirando o que fazem é algo que bota um sorriso no rosto deles”, diz Henrique. 

Os jovens ainda não trabalham como motoristas, mas esse é o objetivo.“Ainda não somos caminhoneiros, mas é o que queremos ser”, explica Henrique. Enquanto esperam para fazer a carteira de habilitação, se dedicam à fotografia. “Só no aguardo para fazer a carta para caminhão. Enquanto isso não ocorre vamos fazendo umas fotos e postando”, diz. A página tem versões também no Facebook e no Instagram. 

O perfil AlucinadosdaSC101 ainda é ativo, retratando caminhões na BR-101 em Santa Catarina Foto: AlucinadosdaSC101/Divulgação

O fim

No comunicado sobre seu encerramento, o Flogão sugere que os usuários do site criem contas num serviço chamado MeAdd.com, que lembra bastante o visual dos antigos flogs. A ideia, porém, não parece ser muito promissora, pois a sensação de abandono do site é latente. 

Tanto o Flogão quanto o MeAdd estão registrados pela empresa Meadd Comunicação, que tem sede em Santa Catarina e Cristiano Costa como um dos sócios. É possível imaginar que o Flogão chegará ao fim pelas mãos de seu próprio criador, o que dá uma certa poesia ao processo. 

O fato é que quem viveu por ali está realmente mexido. As amigas Bárbara Oliveira, 26, e Talyta ‘Koka’ Oliveira, 28, que lideraram uma página de Tibia voltada para mulheres, um ato de resistência num meio tão machista, lamentam.

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“É uma pena o fim. Atualmente não tem nenhum lugar onde os tibianos se sintam tão à vontade para postar. A comunidade tibiana é a que mais vai ser atingida”, diz Koka. O que fica do site para ela são “as amizades, as lembranças e o sentimento de gratidão por tudo o que vivi naquela época”, como sua própria amizade com Oliveira, que já dura mais de 10 anos.

Até o fechamento do site, o “meninasnotibia” ainda figurava nos rankings de mais visitados, com cerca de 1,5 milhão de visitas na história. Hoje, as duas se dedicam a seus filhos, nascidos com um mês de diferença — uma coincidência, segundo elas. 

No último dia 18 de junho, o perfil “geraldoler”, dedicado a estudos do Velho Testamento, postou sua homenagem: “Equipe Flogão, estarão em minhas orações. Teclo Emocionado”.

Os garotos catarinenses do perfil de caminhoneiros têm uma visão mais positiva. “O fim do Flogão não significa que tudo isso vai se acabar”, diz Henrique. “Ele será lembrado por quem viveu essa época”. Como lágrimas na chuva.

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