Tecnologia virou ferramenta para cuidar de idosos, mas abriu brecha para abusos

Com origem em sistemas de segurança e vigilância, os dispositivos podem tirar a privacidade e o controle de uma população

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Por Heather Kelly
Atualização:
Apesar dos benefícios, dispositivos podem tirar a privacidade de idosos, população que tem menos probabilidade de saber como gerenciar a tecnologia por conta própria Foto: DIV

Tecnologias de casa inteligente estão sendo usadas há muito tempo por cuidadores para monitorar adultos mais velhos. As câmeras que podem ser acompanhadas de qualquer lugar estão entre as mais comuns, mas também há sensores de movimento, monitoramento remoto para controles de clima e tomadas elétricas, bem como telas e alto-falantes ativados por voz. Com a configuração certa, alguém pode ver se um parente caiu ou avisar que deixou o fogo ligado.

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Mas os dispositivos, muitos dos quais evoluíram a partir de sistemas de segurança e vigilância, podem tirar a privacidade e o controle de uma população que tem menos probabilidade de saber como gerenciar a tecnologia por conta própria.

À primeira vista, os benefícios da tecnologia de monitoramento residencial e de saúde parecem óbvios. Um fluxo de informações sobre o idoso pode deixar o cuidador à vontade e ajudar a controlar o declínio físico ou cognitivo. É uma maneira de estender o tempo que eles podem viver em suas próprias casas antes de se mudarem para algum lugar como uma comunidade de aposentados ou casa de repouso.

A ideia de usar a tecnologia para ajudar as pessoas à medida que envelhecem não é um problema, dizem os especialistas, mas a maneira como é projetada, usada e informada pode ser. Feita de maneira errada ou sem consentimento, é a vigilância unilateral que pode levar à negligência. Feito da maneira certa, ela pode ajudar pessoas que estão envelhecendo a serem mais independentes.

“Não há nenhuma empresa que tenha adotado tecnologias realmente recíprocas e focadas no cuidador,” disse L. Jean Camp, professor da Escola de Informática e Computação da Universidade de Indiana, que pesquisou tecnologia para idosos.

Um ingrediente necessário para esses tipos de dispositivos é a comunicação bidirecional, diz Camp. É a confirmação de que alguém está do outro lado de um feed de vídeo ou atualização de aplicativo, tornando-se uma conversa em vez de uma das partes assistindo a outra.

A indústria de tecnologia está avançando com mais produtos específicos para cuidados de idosos. Apenas no ano passado, duas empresas de tecnologia anunciaram novos produtos de monitoramento voltados para adultos mais velhos, que tentam se afastar das configurações mais invasivas.

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A Amazon apresentou o Alexa Together, serviço de US$ 20 por mês que permite que cuidadores saibam quando os dispositivos conectados estão sendo usados e tem resposta de emergência 24 horas por dia, 7 dias por semana, que pode ser acionada pela assistente de voz Alexa. A Apple adicionou um recurso que permite que as pessoas compartilhem tendências de saúde como mudanças na atividade diária, padrões de sono ou frequência cardíaca de um iPhone ou Apple Watch com familiares ou médicos.

Idosos também adotaram a tecnologia de casa conectada para uso próprio. Segundo a empresa de pesquisas Forrester, alto-falantes inteligentes como o Amazon Echo são os tipos mais populares de dispositivos conectados para pessoas com 60 anos ou mais, seguidos por termostatos conectados à internet, telas ativadas por voz como o Google Nest Hub e campainhas com câmeras Wi-Fi ou áudio . Além de questões de privacidade, os dispositivos conectados à internet também são uma preocupação de segurança. Muitos têm software inseguro e exigem atualizações regulares e alterações de senha para que não sejam vulneráveis a invasões.

Florence Macauley é a fundadora da AgeWise Home e especialista que atualizaespaços de convivência para pessoas idosas, deficientes ou que sofrem de demência. Ela diz que não se concentra na tecnologia ao modificar casas ou treinar cuidadores para residentes mais velhos. Embora muitas vezes seja contratada por cuidadores, como filhos adultos, ela considera a pessoa que mora na casa como seu cliente.

“Faço questão de que eles [os idosos] entendam que são eles que estão no comando, porque muito da tecnologia que é trazida para esses espaços não é a pedido de quem está sendo vigiado”, disse Macauley.

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Ela também tem visto primordialmente que as famílias podem usar a tecnologia como substituto para os cuidados presenciais.

“Um cliente me disse: meus filhos apenas me observam pela câmera, mas não vêm me visitar”, disse Macauley. “E sei o quanto isso o incomodava. Ele me fez acenar para a câmera. ” Todos os filhos daquele cliente moravam perto.

Estar presente para alguém virtualmente não é o mesmo que estar lá fisicamente, dizem os especialistas. Ter um sistema de apoio pode fazer a diferença entre uma longa permanência no hospital, ou casa de repouso ou a recuperação em casa, de acordo com um novo estudo da Universidade da Califórnia, em San Francisco. Os pesquisadores analisaram dados de pessoas com 65 anos ou mais ao longo de nove anos e descobriram que ter um amigo ou membro da família que pudesse ajudá-los pessoalmente após uma crise de saúde – por exemplo, pernoitar por algum tempo após uma pneumonia –reduziu as chances de uma internação prolongada.

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“Descobri que frequentemente admitimos pessoas no hospital, não apenas por causa de suas necessidades clínicas, mas também por causa de suas necessidades sociais”, disse o principal autor do estudo, Sachin Shah,professor assistente de medicina na Universidade da Califórnia de São Francisco. “O que as pessoas muitas vezes precisam é apenas de ajuda física, como caronas até o consultório médico e ajuda nas atividades da vida diária: comer, tomar banho, vestir-se, ir ao banheiro”

São o tipo de tarefa que requer assistência pessoal, dizem os especialistas, não um robô social itinerante com uma câmera periscópica, olhos arregalados e uma conexão 24 horas por dia, 7 dias por semana com ligação automática para a emergência.

Questões de privacidade

Há, porém, um desequilíbrio de poder que muitas vezes existe entre idosos e seus cuidadores quando se trata de know-how tecnológico. Na pior das hipóteses, a tecnologia pode desempenhar um papel no abuso contra idosos, seja financeiro, físico ou emocional, dizem os especialistas.

Laura Mosqueda, professora de medicina familiar e geriatria e codiretora do Centro Nacional contra o Abuso ao Idoso, diz que a tecnologia doméstica pode ajudar a detectar o abuso de idosos mas também pode contribuir para isso. Recentemente, ela viu um vídeo que uma família gravou com uma câmera Wi-Fi que mostrou um cuidador pago batendo em seu ente querido. Mas ela também está preocupada que tecnologia seja adicionada às casas sem conversas com as pessoas monitoradas sobre o que isso significa.

“Precisamos ter essa conversa com os adultos mais velhos, perguntando se eles estão de acordo com isso” disse Mosqueda. “Estamos dando paz de espírito para a família ou será que isso é o que realmente o adulto mais velho quer?”

O simples fato de compartilhar algo simples como a atividade diária pode fazer com que um membro da família importune a mãe idosa para que se levante e se movimente mais. Ser velho não significa perder seus direitos, diz Mosqueda.

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Quando bem feito, automatizar tarefas como lembretes de medicamentos, desligar aquecedores remotamente, rastrear quando alguém caiu ou ver quem está na porta da mãe, tem o potencial de melhorar o relacionamento entre o cuidador e a pessoa que está ajudando, dizem os especialistas. Pode ajudar no lado mais prático das coisas, verificando a saúde e o movimento. Isso deixa mais tempo para conexões e conversas e torna as visitas pessoais uma oportunidade para momentos de qualidade.

Nem todo mundo tem os mesmos medos sobre privacidade ou acham que é algo com que se preocupar. Susan Spring é uma aposentada saudável de 78 anos que ainda mora sozinha em Schenectady, NY, mas diz que não faria objeções se um de seus filhos colocasse uma câmera em sua casa para fazer o controle das coisas. Ela preferiria apenas um alerta.

“Acho que seria muito divertido”, disse Spring. “Mas gostaria de algo em que, se eles estivessem sintonizando, eu tivesse conhecimento e então, diria: 'Oi'.” / TRADUÇÃO POR ANNA MARIA DALLE LUCHE

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