Ao cancelar série, Netflix mostra que não é 'amiga do espectador'

Ao cancelar ‘One Day At a Time’ e se portar como fã, empresa tenta fazer usuário esquecer que TV é um negócio

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Por James Poniewozik
Atualização:
SérieOne Day At A Timechegou ao fim após três temporadas Foto: Michael Yarish/Netflix

Na última quinta-feira, o serviço de streaming Netflix cancelou a série One Day At A Time após três temporadas. Foi uma perda para fãs e para a TV: era uma série inteligente, divertida, cheia de emoção, com representatividade de minorias que não aparecem tanto nas telas: latinos, trabalhadores, gays, militares, ex-viciados, imigrantes. Era uma combinação da TV clássica – a série de comédia inspirada em família – com uma sensibilidade além de seu tempo. Mas, como diz sua canção tema, “essa é a vida” – e essa é a TV. 

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Sim, séries tem sido canceladas desde que as TVs tinham antenas. O que é diferente dessa vez é a forma como a Netflix anunciou o cancelamento: temendo a raiva dos fãs, a empresa se mostrou tão desapontada quanto eles ao divulgar o fim da série em sua conta no Twitter. Assim, a companhia se eximiu de ser responsável pela notícia triste, quase como se dissesse que era “culpa da natureza”. “Simplesmente o número de pessoas que viram a série não foi suficiente.” 

Mas “não suficiente” é um termo vago. Primeiro, porque ninguém sabe exatamente quantas pessoas assistiram à série, uma vez que a Netflix não revela esses dados. É diferente de saber índices de audiência de qualquer programa na TV aberta ou paga. Mesmo se soubéssemos, seria difícil quantificar o que seria “suficiente”, uma vez que a Netflix não vende anúncios, mas sim assinaturas. Não é como se um número X de espectadores de uma série se transformasse automaticamente em Y dólares para um comercial. É um cálculo que envolve mais arte do que ciência: quantas assinaturas essa série em específico conseguiu gerar? 

É uma pergunta ainda mais complicada quando se consideram outras variáveis: quanto custa fazer um programa? E quando o show é produzido por outra empresa (One Day é da Sony, não da Netflix), como isso entra na conta? No fim, porém, suficiente significa o que sempre significou: uma série é cancelada quando não faz mais sentido para a empresa que a exibe. 

Relacionamento. Como uma série de empresas hoje, a Netflix gosta de se apresentar nas redes sociais como tendo uma voz própria. Ela não quer só os clientes: ela quer um relacionamento. Quer ser a companhia de TV com quem o usuário gasta tempo. Quer ser a TV que todo mundo ama, a #marca mais interessante. Mas a Netflix não é seu parceiro, bem como a HBO ou a fabricante da sua TV, ela é uma corporação. Seu propósito é ganhar dinheiro do seu bolso em troca de entretenimento – pode ser uma transação bacana, mas ainda é uma transação! 

“Não entendam que o cancelamento indica que sua história não é importante”, disse a empresa aos fãs que se viram representados no programa. Mas cancelar uma série é justamente isso, de forma literal: uma empresa decidindo qual história é mais importante e deve receber dinheiro. 

“Vamos continuar achando jeitos de contar essas histórias”, diz a empresa. Bem, essa é fácil: é só continuar a fazê-la e não usar US$ 100 milhões para continuar exibindo reprises intermináveis de Friends

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Pode ser pegar no pé, mas o fato é que a TV precisa de mais da representatividade que One Day At A Time entregou. E bom que isso tenha acontecido: a Netflix não tem mais culpa de só exibir três temporadas de uma série como essa do que qualquer emissora que não tenha feito algo parecido. 

A Netflix não é uma entidade filantrópica: ela sabe que ter apelo com diferentes audiências não é só bom, mas também um atributo chave em um futuro que será indispensável em breve. A empresa faz tuítes sobre mulheres negras e já investiu em séries como Cara Gente Branca, além de criar comédias românticas cheias de diversidade. 

Por outro lado, para sustentar um investimento a longo prazo, é preciso às vezes segurar a onda e manter no ar uma série criticamente elogiada, mesmo que ela não atraia audiência. Ou, ao menos, não cancelar essa série tentando manter a fidelidade dos espectadores pelo preço de alguns tuítes. Sim, TV é um negócio – e um de seus mais velhos princípios é de que falar é fácil. / TRADUÇÃO DE BRUNO CAPELAS

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