Apple e a sua guerra contra aplicativos que combatem o vício em celular
Fabricante do iPhone tem agido ativamente contra aplicativos concorrentes a sua ferramenta de medidor de tempo gasto no celular
23/05/2019 | 05h00
Por Jack Nicas - The New York Times
Empresa liderada por Tim Cook é acusada de boicotar concorrentes
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A história é parecida: todos eles desenvolveram aplicativos que ajudam as pessoas a limitar o tempo que elas e os filhos passam nos iPhones. Então a Apple criou o próprio medidor de tempo gasto nas telas – e tornou muito, muito difícil a existência de outras empresa no mesmo negócio.
No último ano, a Apple impediu ou restringiu o uso de pelo menos 11 dos 17 aplicativos mais baixados criados para ajudar pais a controlar o tempo que os filhos passam utilizando iPhones, segundo análise de jornal The New York Times e da Sensor Time, empresa que coleta dados sobre aplicativos. A Apple também investiu contra outros aplicativos menos conhecidos.
Em alguns casos, a Apple forçou empresas a removerem ferramentas que permitem aos pais controlar uso de aparelhos usados pelas crianças ou bloquear o acesso delas aos conteúdos adultos. Em outros, simplesmente retirou os aplicativos da lista da App Store, sua loja oficial de aplicativos.
Alguns produtores de aplicativos com milhares de assinantes tiveram que abandonar os negócios. A maioria dos outros vê seu futuro em risco.
“Eles nos eliminaram sem aviso prévio”, disse Amir Moussavian, executivo do OurPact, o principal aplicativo de controle dos pais sobre iPhones, com mais de 3 milhões de downloads. Em fevereiro, a Apple tirou de sua lista o aplicativo, que responde por 80% do faturamento da empresa. “Eles (a Apple) estão assassinando sistematicamente o setor”, disse Moussavian.
Comportamento conhecido
As empresas de aplicativos de controle de iPhone pertencem ao mais recente mercado que subitamente se viu competindo com a Apple e ao mesmo tempo está à mercê do titã da tecnologia. Por meio do controle da App Store, onde essas empresas encontram alguns de seus melhores clientes, a Apple detém um poder inusitado sobre o futuro de outras corporações.
Tammy Levine, porta-voz da Apple, disse que a empresa removeu aplicativos ou exigiu mudanças porque eles podem ter acesso a informações demais sobre os usuários de seus aparelhos.
Segundo a porta-voz, a investida da Apple sobre os aplicativos de controle não está relacionada ao lançamento de ferramentas semelhantes. Em resposta a esta reportagem, o vice-presidente de mercado mundial da Apple, Philip W. Schiller, disse por e-mail a alguns clientes que a Apple “atua com extrema responsabilidade nesse terreno, ajudando a proteger nossas crianças de tecnologias que podem ser usadas para violar sua privacidade e segurança”.
Gigante de tecnologia tem seu próprio aplicativo de controle de uso
Estratégia de crescimento
Executivos da área de aplicativos acreditam que estão sendo atacados porque seus apps podem prejudicar negócios da Apple.
Segundo eles, as ferramentas da Apple não são tão agressivas na limitação de tempo nos iPhones e não proporcionam muitas opções. “Ela não está realmente empenhada em ajudar as pessoas a solucionar esse tipo de problema”, disse Fred Stutzman, executivo do Freedom, um aplicativo de controle com mais de 770 mil downloads antes de a Apple removê-lo da lista, em agosto. “Dá para acreditar que a Apple realmente queira que as pessoas passem menos tempo em seus celulares?”
Tim Cook, diretor da Apple, disse numa entrevista que a empresa criou ferramentas para ajudar as pessoas a administrar o uso dos celulares. “Não queremos ver todo mundo usando seus telefones durante todo o tempo”, disse ele. “Isso nunca foi nosso objetivo.”
Na quinta-feira, dois dos mais populares aplicativos de controle paterno, Kidslox e Qustodio, entraram com uma queixa no departamento de competitividade da União Europeia. O Kidslox disse que seus negócios despencaram depois que a Apple forçou-o a fazer mudanças que o tornaram menos eficiente que a sua própria ferramenta.
Na Rússia, a Apple enfrenta acusações de formação de truste por parte do Kaspersky Lab - empresa russa de segurança cibernética que funcionários americanos dizem ser ligada ao governo de Moscou. O Kaspersky acusa a Apple de obrigá-lo a remover dispositivos chave de seu aplicativo de controle paterno. O Kaspersky estuda entrar com reclamação semelhante na União Europeia, disse uma porta-voz.
“Tratamos todos os aplicativos com igualdade, incluindo aqueles que competem com nossos serviços”, disse Levine, a porta-voz da Apple. “Incentivamos a criação de um vibrante ecossistema de aplicativos que dê aos consumidores acesso a tantos apps de qualidade quanto possível.”
O iPhone ainda é o principal produto da Apple
Em outros mercados
A Apple enfrenta ainda outra acusação de abusar de sua posição dominante para crescer ainda mais e sufocar competidores. O assunto ganhou relevância à medida que a fabricante de iPhones expandiu seus negócios para novos mercados, como televisão, mídia e jogos eletrônicos.
O Spotify queixou-se no mês passado a órgãos reguladores europeus de que a Apple usa sua App Store para dar à plataforma de streaming Apple Music uma vantagem injusta sopre o aplicativo Spotify. Reguladores holandeses anunciaram neste mês que vão investigar se a Apple abusa de seu controle sobre a App Store.
Nos Estados Unidos, a senadora democrata Elizabeth Warren, de Massachusetts, candidata à presidência, sugeriu recentemente a separação da App Store da Apple, como parte de sua proposta de impor limites aos gigantes americanos da tecnologia.
Produtores de aplicativos disseram que o que mais os frustrou foi o modo súbito como a Apple apresentou suas exigências. Em vários casos, a Apple avisou-os por meio de uma breve nota que seus aplicativos seriam removidos (e seus negócios afundariam...), segundo correspondência examinada pelo NYT.
Quando os produtores de aplicativos pediram mais informações, as respostas foram superficiais e demoraram a vir. “Como desenvolvedor que estava na Apple Store havia dez anos, eu esperava um pouco mais de cortesia, ou pelo menos um telefonema da Apple explicando o que tinha feito de errado”, disse Suren Ramasubbu, presidente do Mobicip, um aplicativo para controle paterno que neste ano teve 2,5 milhões de downloads, 70% deles por iPhone.
Em 19 de janeiro, Ramasubbu recebeu uma mensagem da Apple informando que ele tinha 30 dias para fazer mudanças em seu aplicativo ou ele seria removido da App Store. “Se você tiver alguma dúvida sobre esta informação, por favor, responda à mensagem para que possamos tomar conhecimento”, dizia a nota. “Atenciosamente, App Store Review”
Durante os 27 dias seguintes, Ramasubbu respondeu quatro vezes, pedindo mais informações. Mais tarde, fez mudanças no app por acreditar que essas atenderiam às exigências da Apple.
Então, com o deadline dado ao Mobicip prestes a vencer, a Apple respondeu três vezes a suas detalhadas perguntas anteriores, virtualmente com a mesma mensagem: “Seu aplicativo usa interfaces de programação de aplicações (API) públicos de modo não aprovado, o que não está conforme com a diretriz 2.5.1 do App Store Review Guidelines”.
“Ouvi alto e bom som”, respondeu Ramasubbu na manhã de 19 de fevereiro, dia do deadline. Ele pediu respostas: poderia a Apple lhe dizer o que ele precisaria fazer para manter o Mobicip nos iPhones? “Todas as diretrizes gerais, dicas ou instruções específicas serão muito bem-vindas. Somos um dos pioneiros em aplicativos de controle paterno. Estamos na App Store há dez anos e sempre nos ativemos às regras”, escreveu ele. “Por favor, mostrem-nos qual é a direção a seguir e recomeçaremos daí.”
Cinco horas depois, a Apple respondeu com uma curtíssima mensagem: “Seu aplicativo tem um problema não resolvido e foi removido da Apple Store”. Segundo Ramasubbu, não foram dados detalhes nem apresentadas razões. “De repente, simplesmente não tínhamos mais um negócio.” / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ
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