Apple e Google se juntaram para rastrear a covid-19, mas não tiveram sucesso
Cientistas da computação relatam problemas de precisão com a tecnologia Bluetooth usada para detectar proximidade entre smartphones e alguns usuários reclamam de falhas nas notificações
29/06/2021 | 05h00
Por Natasha Singer - The New York Times
Os aplicativos nunca receberam o teste de eficácia em grande escala que normalmente se aplica antes de os governos introduzirem intervenções de saúde pública, como as vacinas
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No ano passado, quando a Apple e o Google anunciaram que estavam trabalhando juntas para criar um sistema de rastreamento do coronavírus, a colaboração parecia uma virada de jogo: duas gigantes de tecnologia - cujos sistemas rodam 99% dos smartphones do mundo - tinham o potencial de alertar de forma rápida e automática muitas pessoas para acompanhar a explosão de casos da doença. Agora, porém, depois de meses de experiência, a tecnologia tem sido colocada em xeque.
Com base no software da Apple e do Google, o sistema de smartphone usa sinais Bluetooth para detectar usuários que entram em contato próximo. Se o teste de um usuário der positivo, a pessoa pode notificar anonimamente outros usuários do aplicativo com quem a pessoa pode ter cruzado em restaurantes, trens ou qualquer outro lugar.
Sarah Cavey, corretora de imóveis em Denver, ficou animada quando o estado americano do Colorado lançou um aplicativo para alertar as pessoas sobre possíveis exposições ao coronavírus. Cavey baixou o aplicativo imediatamente. Mas, ao testar positivo para o coronavírus em fevereiro, ela não conseguiu obter do estado o código de verificação especial de que precisava para alertar os outros, disse ela, mesmo depois de ligar para o departamento de saúde do Colorado três vezes.
“Eles anunciam este aplicativo para fazer as pessoas se sentirem bem”, disse Cavey, acrescentando que, frustrada, tinha excluído o aplicativo, chamado CO Exposure Notifications. “Mas, na verdade, o aplicativo não está fazendo nada”.
Áustria, Suíça e outras nações também introduziram aplicativos de vírus baseados no software Apple-Google, assim como cerca de duas dezenas de estados americanos, como Alabama e Virgínia. Até o momento, os aplicativos foram baixados mais de 90 milhões de vezes, de acordo com uma análise da Sensor Tower, uma empresa de pesquisa de aplicativos.
Mas alguns pesquisadores dizem que as escolhas de produtos e políticas das empresas limitaram a utilidade do sistema, levantando questões sobre o poder das Big Techs para definir padrões globais para ferramentas de saúde pública.
Cientistas da computação relataram problemas de precisão com a tecnologia Bluetooth usada para detectar proximidade entre smartphones. Alguns usuários reclamaram de falhas nas notificações. E, até o momento, não se sabe se o potencial dos aplicativos para alertar com precisão as pessoas sobre exposições a vírus supera as desvantagens potenciais - como advertir erroneamente pessoas não expostas, testagem em excesso ou não detectar usuários expostos ao vírus.
“Ainda não se sabe ao certo se esses aplicativos estão ajudando ou não no rastreamento de contatos, se são simplesmente uma distração, se podem até mesmo causar problemas”, escreveram Stephen Farrell e Doug Leith, pesquisadores de ciência da computação do Trinity College em Dublin, em um relatório em abril sobre o aplicativo de alerta de vírus da Irlanda.
Resultados modestos
Nos Estados Unidos, alguns pesquisadores e autoridades de saúde pública disseram que os aplicativos demonstraram benefícios modestos, mas importantes. No Colorado, mais de 28 mil pessoas usaram a tecnologia para notificar os contatos sobre possíveis exposições a vírus - o departamento de saúde do Colorado afirma que melhorou seu processo e agora emite automaticamente os códigos de verificação para todas as pessoas que apresentam resultados positivos no estado. Na Califórnia, que lançou um aplicativo de rastreamento de vírus chamado CA Notify em dezembro, cerca de 65 mil pessoas utilizaram o sistema para alertar outros usuários do aplicativo, disse o estado.
“A tecnologia de notificação de exposição vem mostrando sucesso”, disse o Dr. Christopher Longhurst, diretor de informações da UC San Diego Health, que gerencia o aplicativo da Califórnia. “Quer sejam centenas de vidas salvas ou dezenas ou um punhado, se salvarmos vidas, já um grande negócio”.
Em declaração conjunta, a Apple e o Google disseram: “Temos orgulho de colaborar com as autoridades de saúde pública para fornecer um recurso - baixado por muitos milhões de pessoas em todo o mundo - que vem ajudando a proteger a saúde pública”.
Baseado em ideias desenvolvidas por Cingapura e por acadêmicos, o sistema da Apple e do Google incorporou proteções de privacidade que deram às agências de saúde uma alternativa aos aplicativos mais invasivos. Ao contrário dos aplicativos de rastreamento de vírus que rastreiam continuamente o paradeiro dos usuários, o software da Apple e do Google depende de sinais Bluetooth, que consegue estimar a distância entre smartphones sem precisar saber a localização das pessoas. E usa códigos de identificação rotativos - e não nomes reais - para registrar os usuários do aplicativo que entram em contato próximo por 15 minutos ou mais.
Algumas agências de saúde previram no ano passado que a tecnologia seria capaz de notificar os usuários sobre exposições a vírus mais rápido do que os rastreadores de contato humano. Outras disseram esperar que os aplicativos possam alertar os passageiros que se sentam ao lado de um estranho infectado em um ônibus, trem ou avião - pessoas em risco que os rastreadores normalmente não conseguiriam identificar.
“Todos que usam o aplicativo estão ajudando a manter o vírus sob controle”, disse a chanceler Angela Merkel, da Alemanha, no ano passado, em um vídeo promovendo o sistema de alerta do país, chamado Corona-Warn-App.
Limitações
Os aplicativos, contudo, nunca receberam o teste de eficácia em grande escala que normalmente se aplica antes de os governos introduzirem intervenções de saúde pública, como as vacinas. E os recursos de privacidade do software - que evitam que agências governamentais identifiquem os usuários do aplicativo - dificultaram para os pesquisadores determinar se as notificações ajudaram a impedir a transmissão do vírus, disse Michael T. Osterholm, diretor do Centro de Pesquisa e Política de Doenças Infecciosas do Universidade de Minnesota.
“Os aplicativos não desempenharam praticamente nenhum papel em nossa capacidade de investigar os surtos que ocorreram aqui”, disse Osterholm.
Algumas limitações surgiram antes mesmo do lançamento dos aplicativos. Por um lado, observam alguns pesquisadores, o software de notificação de exposição exclui inerentemente certas populações vulneráveis, como idosos que não podem pagar por smartphones. Por outro lado, dizem eles, os aplicativos podem enviar alarmes falsos porque o sistema não está configurado para incorporar fatores de mitigação, como a possibilidade de os usuários estarem vacinados, usarem máscaras ou se encontraram ao ar livre.
A detecção de proximidade em aplicativos de alerta de vírus também pode ser inconsistente. No ano passado, um estudo sobre o sistema do Google para telefones Android realizado em um bonde em Dublin relatou que as paredes, pisos e tetos de metal distorciam a intensidade do sinal do Bluetooth a tal ponto que a chance de detecção de proximidade precisa seria “semelhante a mesma de acionar notificações selecionando os passageiros aleatoriamente”.
Essas falhas irritaram os primeiros usuários, como Kimbley Craig, prefeita de Salinas, Califórnia. Em dezembro passado, quando as taxas de vírus estavam aumentando, ela baixou o aplicativo de notificação de exposição do estado em seu telefone Android e logo depois testou positivo para a covid-19. Mas depois de inserir o código de verificação, disse ela, o sistema não enviou o alerta para seu parceiro, com quem ela mora e que também baixara o aplicativo.
“Se o aplicativo não pega uma pessoa que mora na mesma casa, não sei o que ele pode fazer”, disse Craig.
Em comunicado, Steph Hannon, diretor sênior de gerenciamento de produtos do Google para notificações de exposição, disse que havia “desafios conhecidos no uso da tecnologia Bluetooth para calcular a distância precisa entre os dispositivos” e que a empresa estava trabalhando continuamente para melhorar a precisão.
Alguns especialistas em saúde pública reconheceram que o sistema de alerta de exposição era um experimento com o qual eles - e os gigantes da tecnologia - estavam aprendendo e ao qual vinham incorporando melhorias à medida que avançavam.
Um problema que eles descobriram no início: para impedir alarmes falsos, os estados verificam os resultados positivos dos testes antes que uma pessoa possa enviar notificações de exposição. Mas os laboratórios locais às vezes podem levar dias para enviar os resultados dos testes às agências de saúde, limitando a capacidade dos usuários do aplicativo de alertar outras pessoas rapidamente.
No Alabama, por exemplo, o aplicativo de alerta de vírus GuideSafe foi baixado cerca de 250 mil vezes, de acordo com a Sensor Tower. Mas as autoridades de saúde do estado disseram que conseguiram confirmar os resultados positivos dos testes de apenas 1.300 usuários do aplicativo. É um número muito menor do que as autoridades de saúde esperavam, disseram eles, dado que mais de 10% dos alabamianos testaram positivo para o coronavírus.
“O aplicativo seria muito mais eficiente se esses processos fossem menos manuais e mais automatizados”, disse o Dr. Scott Harris, que supervisiona o Departamento de Saúde Pública do Alabama.
O Colorado, que emite automaticamente os códigos de verificação para as pessoas com teste positivo, relatou taxas de uso mais altas. E, na Califórnia, a UC San Diego Health criou uma linha de ajuda dedicada para a qual os usuários do aplicativo podem ligar se não receberem seus códigos de verificação. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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