Em vez de viagens, CEO do Uber aposta no delivery como futuro da empresa

Depois de passar quatro anos organizando a empresa deixada por Travis Kalanick, Dara Khosrowshahi começa a direcionar esforços para o serviço de entregas Uber Eats

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Por Maureen Dowd
Atualização:
Frente ao endurecimento de regulações contra empresas de tecnologia nos Estados Unidos, Khosrowshahi promete remunerações melhores Foto: Amanda Perobelli/Estadão

O presidente executivo do Uber, Dara Khosrowshahi, é uma pessoa estranhamente normal para os padrões do Vale do Silício. Ele não deixou crescer uma barba ao estilo neandertal nem passa as férias de verão no espaço – ao contrário disso, ele vai para a bucólica Ilha de Whidbey, próxima de Seattle. Assumindo um dos piores empregos de “limpeza" na história do capitalismo americano, em uma das companhias mais odiadas, Khosrowshahi, 52, foi como um pai que tinha de limpar a bagunça após uma festa universitária, jogando todos os copos fora e limpando vômitos. Agora, quatro anos depois, ele está começando a sonhar mais alto. 

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O executivo deixou em 2017 a empresa de viagens Expedia, onde em 12 anos havia quintuplicado a receita, para assumir o Uber – até então,comandado por Travis Kalanick, cujo nome se tornou sinônimo de manobras agressivas no campo dos negócios. “O conselho do meu pai foi: ‘Se uma companhia que é sinônimo de um verbo lhe oferecer um emprego, aceite’”, lembra Khosrowshahi, em um jantar com a reportagem do The New York Times

Nos últimos anos, Khosrowshahi superou a fase conturbada de Kalanick, a turnê de pedidos de desculpas ao redor do mundo, um dia de IPO instável e finalmente a empresa começou a caminhar para a lucratividade. Então veio a pandemia, e ele teve de demitir 25% da força de trabalho. Quem iria querer entrar em um carro com um estranho, ainda que tivesse para onde ir?

Khosrowshahi explicou que “não tinha tempo para se sentir deprimido ou para se lamentar”. Enquanto tentava freneticamente imaginar se a companhia – que já estava perdendo bilhões – conseguiria sobreviver ao perder, em alguns lugares, 85% dos negócios de corridas, ele teve um rápido vislumbre: o Uber Eats, braço do negócio em que havia investido dinheiro nos dois anos anteriores, apesar de muitos investidores não terem gostado.

“Quando entrei na empresa, o Uber Eats era um negócio de US$ 2,5 bilhões”, contou. “E já vamos superar os US$ 50 bilhões agora. Em termos de volume, o delivery se tornará maior do que a parte de corridas, principalmente porque vamos para o mercado, para a farmácia e para todo tipo de comércio local. É um negócio maior”.

No livro de 2019 A Guerra pela Uber (Editora Intrínseca), o repórter do The New York Times Mike Isaac escreve que, para muitos, ainda há uma longa e persistente preocupação se o Uber sob a gestão de Dara Khosrowshahi irá inovar e se a companhia ainda sonha grande. A cultura tóxica de Travis se foi, mas ninguém sabe exatamente qual é o estilo de Khosrowshahi. Será que ele se preocupa com o fato de a empresa não ser mais sexy o bastante para atrair investidores e novos talentos? O executivo responde que esse não é seu objetivo na vida. “Quero construir a melhor companhia”, afirma ele.

Khosrowshahi afirma que seu sonho principal hoje é “apertar um botão e mandar entregar um piano na sua casa em uma hora e meia”. “Continuaremos com o nosso trabalho de entregas. Em todo lugar onde você quiser ir, o que você quiser, de qualquer maneira que você queira, nós estaremos lá”, diz. 

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O Uber Eats segurou a empresa durante a pandemia Foto: Valentyn Ogirenko/Reuters

Sob nova direção

No começo, Kalanick prejudicou o seu sucessor, segundo pessoas de dentro do Uber, mas Khosrowshahi foi tirando-o dos negócios aos poucos. A equipe de Kalanick não facilitou as coisas para “o cara da matemática”, como alguns o chamam, e comenta-se que o chefe não gostava muito do lema de Travis, que era: “Maior! Mais rápido!”. 

“Não sei o que Travis estava fazendo”, disse o atual CEO do Uber, com sua voz profunda e controlada. “Honestamente, não gastei muito tempo tentando imaginar o que era. Comigo, ele se mostrou, em geral, prestativo. Depois saiu. Ele se separou da companhia, e acho que foi uma coisa boa a se fazer”. 

O laço com o cofundador do Uber, porém, não foi totalmente rompido. “Trabalhamos com ele no Uber Eats e é muito bom”, afirma Khosrowshahi. Kalanick tem uma nova startup, a CloudKitchens, que aluga espaço comercial e o transforma em cozinhas compartilhadas para negócios de delivery. “Eu precisei entrar e deixar bem claro que a companhia não pertencia mais a ele. Posso imaginar que isso o tenha machucado, porque foi ele que criou a empresa. Não estou necessariamente o defendendo, mas compreendo como isso possa ser duro para ele. Era a sua vida”.

Andrew Macdonald, vice-presidente sênior de mobilidade do Uber, que trabalhou para ambos, elogiou Khosrowshahi por ter mudado “os valores da nossa cultura e fazer a coisa certa”.

“Seremos tão combativos como éramos sete, oito anos atrás? Não”, disse Macdonald. “Será que Dara lutará e defenderá os princípios até o fim por aquilo em que acredita? Sim. Travis foi um concorrente realmente feroz. Mas a companhia definitivamente tinha pontos cegos como consequência disso”.

Kalanick criou startup de cozinhas para delivery Foto: David Paul Morris/Bloomberg

Foco

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Durante a pandemia, Khosrowshahi percebeu que todos os outros negócios do Uber – patinetes, bicicletas elétricas, carros autônomos, carros voadores – eram uma distração da missão principal da empresa. “Receber toda e qualquer coisa que quiser em sua casa se tornará algo maior do que jamais poderíamos imaginar”.

Há algumas semanas, Khosrowshahi foi por dois dias de bicicleta fazer entregas para a Uber Eats em São Francisco. “No começo, estava nervoso,” afirmou, acrescentando que às vezes era divertido e em outras era difícil. “Quase me atropelaram quando fui fazer entregas perto do estádio de beisebol. O jogo dos Giants estava começando, e o trânsito estava uma loucura. Estou convencido de que alguém sabia que eu torço para os Mets”.

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Porém, o novo foco contrasta com uma visão antiga: mais ou menos na época do IPO da Uber, em 2019, Khosrowshahi sugeriu que a companhia poderia ser a Amazon dos transportes. Será que o sonho se apagou?

“Acho que a esta altura nós somos 'vizinhos'. Olharemos por cima da cerca e acenaremos para eles, talvez nos vejam acenando, talvez não”, ele disse. “Mas acho que a nossa casa vai ficar maior”.

Do outro lado, alguns analistas observam que o negócio de corridas compartilhadas do Uber tem um problema existencial. Será que o modelo de negócio original da empresa só funcionaria se usasse bilhões para subsidiar o custo das corridas até a transição para os carros autônomos? Ocorre que um futuro sem motoristas está ainda muito distante. Será que o Uber terá de cobrar muito mais pelas corridas ou encontrar uma maneira de pagar ainda menos os motoristas? Isso não seria o contrário de tratar os trabalhadores com o mínimo de respeito?

Khosrowshahi hesitou e falou que a Proposta 22, um projeto de lei na Califórnia que permite que as empresas mantenham os motoristas como empregados independentes, nunca poderia ter sido aprovada “no mais democrata dos Estados democratas” sem o apoio de muitos motoristas. Ele disse que, há cerca de um ano, decidiu focar não apenas na independência dos motoristas, mas também em boas remunerações.

Scott Galloway, professor de marketing da Faculdade de Administração de Empresas da Universidade de Nova York, compara o CEO do Uber a Sheryl Sandberg, do Facebook: “o rosto bonito” que ofusca os danos que suas empresas estão fazendo à sociedade.

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“É a primeira vez que sou chamado de rosto bonito”, disse Khosrowshahi ironicamente, antes de admitir: “O nosso sistema não funciona para uma certa porcentagem de motoristas que não conseguem descobrir, ou não conseguem entender, como fazê-lo funcionar. Acredito que devemos criar melhores salvaguardas para pessoas que não conseguem fazer o nosso sistema funcionar da maneira como eles querem, e estamos dispostos a trabalhar com as autoridades reguladoras para ter uma salvaguarda como o salário mínimo”.

Washington está tendo decididamente uma visão mais sombria do Vale do Silício. O presidente Joe Biden nomeou Lina Khan, defensora do aumento das regulamentações para as gigantes tecnológicas, como presidente da Comissão Federal do Comércio e signatária de uma ordem executiva que mira as práticas contrárias à concorrência.

Pete Buttigieg, que participou de um protesto em frente à sede da Uber em 2019, atualmente preside o Departamento dos Transportes. Mary Walsh, que combateu a Uber quando prefeita de Boston, agora dirige o Departamento do Trabalho – em abril, ela falou a respeito da necessidade de reclassificar alguns trabalhadores independentes como funcionários.

Embora note que “o nosso ambiente de testes é muito mais municipal e estadual do que federal”, Khosrowshahi disse que esse ataque às gigantes da tecnologia é inevitável.

“Acho que, assim como a Uber, algumas das empresas cresceram depressa demais, e algumas não assumiram a responsabilidade pelo seu poder. Acredito que agora elas estão sendo chamadas a prestar contas, e que isso acabará resultando em uma sociedade melhor, mais equilibrada, daqui em diante”, afirmou. “A minha esperança é que não destruam o que construímos.”/ TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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