Eric Schmidt constrói pontes entre o Vale do Silício e o Pentágono

Ex-presidente executivo do Google, Schmidt agora está auxiliando o Exército americano a se modernizar, com uso de tecnologias como aprendizado de máquina. 

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Por Kate Conger e Cade Metz
Atualização:
Eric Schmidt agora usa sua fortuna para investir em empresas que podem prestar serviços militares Foto: Reuters/Lucy Nicholson

Em julho de 2016, o general de exército Raymond Thomas, diretor do comando de operações especiais dos Estados Unidos, recebeu um convidado: Eric Schmidt, presidente do conselho do Google. Thomas, que atuou na Guerra do Golfo Pérsico de 1991 e cumpriu numerosas missões no Afeganistão, passou a maior parte do dia mostrando a Schmidt o quartel-general do comando de operações especiais em Tampa, na Flórida.  

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Juntos, os dois analisaram protótipos de trajes com exoesqueletos robóticos e participaram de sessões de instruções operacionais, a respeito das quais Schmidt desejava aprender mais, pois recentemente tinha começado a orientar o exército em questões de tecnologia. Após a visita, enquanto viajavam de Chevy Suburban em direção ao aeroporto, a conversa se voltou para um tipo de inteligência artificial. 

“Vocês são péssimos em se tratando do aprendizado de máquina", disse Schmidt a Thomas, de acordo com a memória do oficial. “Se passasse um dia mexendo embaixo do seu capô, eu poderia resolver a maioria dos seus problemas.” Thomas disse que se sentiu tão ofendido que quis jogar Schmidt para fora do carro, mas se conteve.

Quatro anos depois, Schmidt, de 65 anos, partiu de sua fria avaliação das deficiências tecnológicas do exército para promover uma campanha pessoal em nome da modernização das forças americanas de defesa empregando mais engenheiros, mais software e mais inteligência artificial. Nesse processo, o bilionário da tecnologia, que deixou o Google no ano passado, reinventou-se como o principal elo entre o Vale do Silício e a comunidade da segurança nacional.

Schmidt participa agora de dois conselhos de assessoria governamental voltados ao fomento à inovação tecnológica no departamento de defesa. Entre seus correspondentes, estão o ex-secretário de estado Henry Kissinger e o ex-vice-secretário da defesa Robert Work. E, por meio de sua própria firma de capital de investimento e sua fortuna pessoal de US$ 13 bilhões, Schmidt investiu milhões de dólares em mais de meia dúzia de startups do setor de defesa.

Em entrevista, Schmidt – às vezes ponderado, outras didático e arrogante – disse ter embarcado em uma jornada para modernizar o exército americano porque este se encontrava “encalhado no software dos anos 1980".

Ele se apresentou como tecnólogo bem-sucedido que não acredita em aposentadoria e que tem em relação ao país uma dívida por causa de sua riqueza - e agora, finalmente, dispunha do tempo e da visão para solucionar um dos problemas mais difíceis dos EUA. De acordo com ele, o objetivo “deve ser o maior número possível de empresas de software fornecendo muitos tipos diferentes de produtos: software militar, sistemas de recursos humanos, sistemas de e-mail, tudo que envolve espionagem militar, sistemas de armas, etc.". 

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Schmidt está levando adiante uma visão de mundo do Vale do Silício na qual os avanços no software e na IA são as chaves para solucionar praticamente qualquer problema. Ainda que essa filosofia tenha levado a redes sociais que difundem informações falsas e outras consequências indesejadas, Schmidt se disse convencido de que a aplicação de tecnologias novas e pouco testadas a situações complexas - incluindo situações mortíferas - tornaria o pessoal mais eficiente, melhorando a posição dos EUA na sua concorrência com a China.

Esse tecno-solucionismo é complicado por seus elos com o Google. Ainda que Schmidt tenha deixado a empresa em junho do ano passado e não mantenha na organização nenhum papel operacional oficial, ele é dono de US$ 5,3 bilhões em ações da Alphabet, empresa à qual o Google pertence. Ele também segue na folha salarial como conselheiro, recebendo salário anual de US$ 1, com dois assistentes instalados no quartel-general do Google no Vale do Silício.

Isso levou a alegações segundo as quais Schmidt estaria colocando os interesses financeiros do Google acima de outras considerações no seu trabalho de Defesa. No fim do ano passado, um tribunal federal ordenou que uma comissão de assessoria parlamentar chefiada por ele entregasse documentos que ilustrariam se Schmidt teria defendido seus interesses de negócios na chefia do grupo.Schmidt disse que seguiu as regras para evitar conflitos. “No Pentágono, todos têm que jogar pelas regras, e isso vale também para nós", disse ele. O Google e o departamento de Defesa dos EUA não quiseram se pronunciar a respeito do trabalho de Schmidt.

Mesmo sem essas complicações, mudar os rumos do exército não é tarefa fácil. ainda que Schmidt tenha ajudado na criação de relatórios e recomendações de tecnologia para o Pentágono, poucas de suas sugestões foram adotadas.

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‘São coisas que temos interesse em ver’

O primeiro contato de Schmidt com o exército ocorreu em 1976, quando cursava graduação na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Ali, ele se concentrou na pesquisa da computação distribuída, financiada por dinheiro da Agência de Projetos Avançados em Pesquisa de Defesa (DARPA), ramo de pesquisas do departamento da defesa

O trabalho impulsionou a carreira de Schmidt na tecnologia. Depois de completar a graduação em ciências da computação, ele trabalhou em diferentes empresas de tecnologia durante mais de duas décadas, incluindo a fabricante de software de rede Novell. Em 2001, o Google o indicou para o cargo de presidente executivo.

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Na época, a empresa de mecanismos de busca estava na infância. Seus fundadores, Larry Page e Sergey Brin, então na casa dos 20 anos, tinham acabado de concluir um curso de doutorado na Universidade Stanford e tinham pouca experiência com os negócios. Schmidt foi contratado para ajudá-los, funcionando como “supervisor adulto” - com resultados que excederam todas as expectativas.

Em 2011, com o valor de mercado do Google perto de US$ 400 bilhões, a empresa anunciou que Page estava pronto para reassumir o cargo de presidente executivo. Schmidt se tornou presidente do conselho.

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No Fórum Econômico Mundial de 2016, em Davos, na Suíça, Ash Carter, então secretário de Defesa dos EUA, pediu para se reunir com Schmidt. Ele tinha uma proposta a fazer: um convite para que Schmidt comandasse o Conselho de Inovação em Defesa, um grupo civil consultivo com a missão de trazer novas tecnologias ao Pentágono. “Estávamos em um daqueles hotéis baratos, e de repente ele entrou com sua pequena comitiva, basicamente me dizendo, ‘É isso que queremos que você faça. É a pessoa perfeita para a presidência do conselho’”, disse Schmidt.

Como diretor do Conselho de Inovação em Defesa, Schmidt começou a visitar bases militares, porta-aviões e fortalezas de armazenamento de plutônio. As viagens, que levaram Schmidt a cerca de 100 bases em lugares como Fayetteville, na Carolina do Norte, e Osan, na Coreia do Sul, foram muito diferentes da vida de confortos à qual ele estava acostumado no Vale do Silício.

“São coisas que temos interesse em ver", disse Schmidt. “Fiz o passeio dos mísseis nucleares. Coisas difíceis. Me levaram para conhecer a base de Cheyenne Mountain para que eu pudesse compreender a realidade dessa situação.” 

Uma das primeiras visitas foi a Thomas, conhecido como Tony, com quem Schmidt viu a exibição de mapas de transmissões de vídeo ao vivo mostrados em imensas telas. “Eric observou que boa parte do trabalho do exército é esperar e assistir", disse Josh Marcuse, então diretor executivo do Conselho de Inovação em Defesa, que participou da visita. As visitas tornaram tangível aquilo que Carter dissera a Schmidt a respeito do atraso tecnológico do exército. Schmidt logo fez sugestões para mudar isso.

Algumas das ideias propostas eram impraticáveis. Eric Rosenbach, então chefe de gabinete de Carter, lembrou de uma vez em que Schmidt lhe disse que o Pentágono estaria em melhor situação se contratasse apenas engenheiros durante um ano. Outras foram úteis. Em uma instalação da força aérea no Catar em 2016, Schmidt visitou oficiais que planejavam as rotas dos aviões de reabastecimento. Eles usavam uma lousa com canetas marcadoras para definir o cronograma, tarefa que levava oito horas para ser concluída.

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Schmidt lembra de ter pensado, “É sério? É assim que administramos uma guerra aérea?” Posteriormente, ele e outros membros do departamento de defesa trabalharam com a empresa de tecnologia Pivotal para fornecer software a essa equipe de oficiais.

Arrependido por não opinar

No Google, a influência de Schmidt foi diminuindo com a ascensão de novas lideranças - como Sundar Pichai, atual presidente executivo da Alphabet, e Ruth Porat, diretora financeira da empresa. O Google também foi questionado quando teve início a era do #MeToo, em 2017, quando falou-se da conduta de Schmidt enquanto presidente executivo. Schmidt, que é casado, manteve abertamente casos extraconjugais enquanto administrava a empresa.

Em dezembro de 2017, Schmidt deixou a presidência do Google, mas continuou no conselho administrativo. Ele disse que buscava começar outro capítulo na vida. “Se eu continuasse na presidência, o ano seguinte seria igual ao anterior, e eu queria uma mudança de ênfase", disse Schmidt. “Como presidente do Google, meu trabalho era ir para lá e para cá fazendo discursos, foi até Bruxelas e desenvolvi tudo aquilo que o Google segue fazendo hoje. Para mim, é muito melhor trabalhar nesses novos projetos.”

O Google não quis comentar a saída de Schmidt da presidência. Na época, os laços de Schmidt com o Google já estavam atrapalhando seu trabalho na defesa. Em 2016, Roma Laster, funcionária do departamento de defesa, apresentou uma queixa na agência citando preocupações em relação a Schmidt e a possíveis conflitos de interesse, disse Marcuse.

Na queixa, informada anteriormente pelo ProPublica, Roma, que trabalhava com o Conselho de Inovação em Defesa, disse que Schmidt perguntou a um membro das forças armadas quais tipos de serviços de computação na nuvem sua unidade usava, e se eles tinham pensado em alternativas. De acordo com ela, Schmidt se envolveu em um conflito de interesses porque trabalhava para o Google, que também oferece serviços de computação na nuvem.

Marcuse, que atualmente trabalha no Google, disse que Schmidt era “escrupuloso e disciplinado” para evitar esses conflitos. Schmidt disse seguir a regra que proíbe conflitos de interesse. Roma não respondeu aos pedidos de entrevista.

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Schmidt logo se viu envolvido em outro problema entre o Google e o exército. O Google tinha assinado em 2017 um contrato para ajudar o Pentágono a construir sistemas para analisar automaticamente imagens de drones com o objetivo de identificar objetos específicos como edifícios, veículos e pessoas.

Schmidt foi um dos proponentes da iniciativa, chamada Project Maven. Ele disse ter incentivado o Pentágono a desenvolver o projeto e depôs ao congresso a respeito dos méritos da ideia, mas não se envolveu na escolha do Google por parte da agência.

Mas esses esforços ruíram em 2018, quando funcionários do Google protestaram dizendo que não queriam que seu trabalho resultasse em ataques mortais. Mais de 3.000 funcionários assinaram uma carta endereçada a Pichai, dizendo que o trabalho minaria a confiança do público na empresa. Em junho de 2018, o Google disse que não renovaria o contrato do Maven; posteriormente, a empresa prometeu que não trabalharia mais em nenhum tipo de sistema de armas.

Schmidt disse ter evitado participar de debates a respeito do Project Maven por causa das regras de conflito de interesse, mas se arrepende de não ter opinado. “Eu certamente teria uma contribuição a fazer", disse ele.

‘Não importa’

Em abril, Schmidt anunciou planos de deixar o conselho do Google. Tinha ajudado a criar um centro de IA com o apoio do Pentágono em 2018 e também se tornou copresidente da Comissão Nacional de Segurança para Inteligência Artificial, um novo grupo que orienta o congresso a respeito do desenvolvimento da IA para a defesa. Um mês depois de deixar o Google, Schmidt investiu na Rebellion Defense, uma startup de software fundada por ex-funcionários do departamento de defesa que analisa vídeos feitos por drones. Sua firma de investimento injetou mais dinheiro na empresa, e Schmidt entrou para o conselho administrativo.

Esse investimento levou a novos problemas. O Centro de Informações de Privacidade Eletrônica (EPIC), grupo sem fins lucrativos que defende a privacidade e as liberdades civis, processou em setembro a comissão da IA por não ter divulgado seus registros ao público. O EPIC disse que o grupo estava cheio de executivos da indústria, como Schmidt, e outros da Microsoft, da Amazon e da Oracle, que poderiam direcionar o governo em favor dos interesses de suas empresas.

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Schmidt estava sendo investigado por causa da Rebellion Defense e sua capacidade de pressionar o governo a usar os serviços dessa startup, de acordo com o EPIC.

“Nada foi revelado ao público a respeito das informações que Eric forneceu à comissão a respeito de seus interesses de negócios", disse John Davisson, advogado do EPIC.

Em dezembro, um tribunal distrital decidiu que a comissão da IA deveria divulgar os registros solicitados pelo EPIC. A comissão divulgou centenas de páginas de documentos, a maioria das quais não envolve Schmidt nem os negócios dele. O EPIC disse aguardar a divulgação de mais registros.

Chris Lynch, diretor executivo da Rebellion Defense, disse que Schmidt orienta a empresa somente nas contratações e no crescimento. Schmidt disse não influenciar o departamento de defesa para que adquira tecnologia da startup.

Ele segue avançando. Em novembro, revelou um compromisso de US$ 1 bilhão por meio da Schmidt Futures, firma de filantropia que ele administra com a mulher, Wendy, para financiar o ensino daqueles que desejam trabalhar como servidores públicos. “As pessoas me dão ouvidos, seja porque tenho razão ou por causa do meu trabalho anterior no, ou por me conhecerem, ou porque posso trazer dinheiro à mesa", disse ele. “Não importa, desde que eu possa ter um impacto positivo.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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