'Parceiro secreto' do Facebook recebe US$ 500 mi por ano para limpar a rede

A empresa de Mark Zuckerberg e a consultoria Accenture raramente falam sobre a parceria, mesmo com o efeito tóxico das tarefas sob os trabalhadores

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Por Adam Satariano e Mike Isaac
Atualização:
Desde 2012, Facebook pagou pelo serviço de dez consultorias, entre elas a Accenture, para filtrar conteúdo de ódio da plataforma Foto: Regis Duvignau/Reuters

O Facebook e a Accenture raramente falaram sobre seu acordo ou mesmo reconheceram que trabalham juntos. Mas seu relacionamento secreto está no centro de um esforço da maior empresa de mídia social do mundo para se distanciar da parte mais tóxica de seus negócios.

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Nos últimos anos, o Facebook viveu sob escrutínio por conta do conteúdo violento e odioso que flui por seu site. O CEO, Mark Zuckerberg, prometeu limpar a plataforma, várias vezes. Ele promoveu o uso de inteligência artificial (IA) para eliminar postagens tóxicas e elogiou esforços para contratar milhares de trabalhadores para remover as mensagens que máquina não consegue tirar do ar. Mas, nos bastidores, o Facebook discretamente pagou outras pessoas para assumirem grande parte da responsabilidade.

Desde 2012, a empresa contratou pelo menos dez empresas de consultoria e recrutamento em todo o mundo para filtrar seus posts, juntamente com uma rede mais ampla de subcontratados, de acordo com entrevistas e registros públicos.

Nenhuma empresa foi mais importante para esse empreendimento do que a Accenture. A empresa Fortune 500, mais conhecida por fornecer tecnologia de ponta, serviços de contabilidade e consultoria para governos e multinacionais, tornou-se a maior parceira do Facebook na moderação de conteúdo, de acordo com uma análise do New York Times.

A Accenture assumiu o trabalho - e lhe deu um verniz de respeitabilidade - porque o Facebook assinou com a empresa contratos para moderação de conteúdo e outros serviços no valor de pelo menos US $ 500 milhões por ano. A Accenture emprega mais de um terço das 15 mil pessoas que o Facebook disse ter contratado para inspecionar suas postagens. E, embora os acordos proporcionem apenas uma pequena fração da receita anual da Accenture, eles fornecem uma importante tábua de salvação para o Vale do Silício. Na Accenture, o Facebook é conhecido como um “cliente diamante”.

Seus contratos, que não foram relatados anteriormente, redefiniram os limites tradicionais de uma relação de terceirização. A Accenture absorveu as piores facetas da moderação de conteúdo e tomou para si os problemas de conteúdo do Facebook. Como um dos custos do contrato, lidou com os problemas de saúde mental dos trabalhadores derivados da análise dos posts. A empresa lutou contra o ativismo trabalhista quando esses trabalhadores pressionaram por mais salários e benefícios. E silenciosamente suportou o escrutínio público quando eles se manifestaram contra o trabalho.

Essas questões foram agravadas pelas exigentes metas de contratação e de desempenho do Facebook e por muitas mudanças em suas políticas de conteúdo, as quais a Accenture tinha dificuldade de acompanhar, disseram quinze funcionários e ex-funcionários. Quando confrontada com uma ação legal dos moderadores, a Accenture ficou quieta enquanto o Facebook argumentava que não era responsável porque os trabalhadores pertenciam à Accenture e a outras empresas.

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“Não seria possível ter o Facebook como o conhecemos hoje sem a Accenture”, disse Cori Crider, cofundadora da Foxglove, um escritório de advocacia que representa moderadores de conteúdo. “Empresas como a Accenture, em troca de pagamentos exorbitantes, permitiram que o Facebook mantivesse à distância o problema humano fundamental de seus negócios”.

O Times entrevistou mais de 40 funcionários e ex-funcionários da Accenture e do Facebook, advogados trabalhistas e outros sobre o relacionamento das empresas, o qual também inclui o trabalho de contabilidade e publicidade. A maioria falou anonimamente por causa de acordos de sigilo e medo de represálias. O Times também analisou documentos do Facebook e da Accenture, documentos legais e registros regulatórios.

O Facebook e a Accenture se recusaram a disponibilizar executivos para comentar o assunto. Drew Pusateri, porta-voz do Facebook, disse que a empresa estava ciente de que os trabalhos de moderação de conteúdo “podem ser difíceis, razão pela qual trabalhamos em estreita colaboração com nossos parceiros para avaliar constantemente a melhor forma de apoiar essas equipes”.

Stacey Jones, porta-voz da Accenture, disse que o trabalho era um serviço público “essencial para proteger nossa sociedade, mantendo a internet segura”.

Nenhuma das empresas mencionou a outra pelo nome.

Combate à pornografia 

Boa parte do trabalho do Facebook com a Accenture gira em torno de um problema de nudez.

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Em 2007, milhões de usuários aderiram à rede social todos os meses - e muitos postavam fotos de corpos nus. Um acordo que o Facebook chegou naquele ano com Andrew Cuomo, à época procurador-geral de Nova York, exigia que a empresa retirasse postagens pornográficas sinalizadas por usuários em 24 horas.

Os funcionários do Facebook que policiavam o conteúdo logo ficaram sobrecarregados com o volume de trabalho, disseram membros da equipe. Sheryl Sandberg, diretora de operações da empresa, e outros executivos pressionaram a equipe a encontrar soluções automatizadas para vasculhar o conteúdo, disseram três deles.

O Facebook também começou a buscar a terceirização, disseram eles. A terceirização era mais barata do que contratar pessoas e fornecia benefícios fiscais e regulatórios, além da flexibilidade de crescer ou diminuir rapidamente em regiões onde a empresa não tinha escritórios ou especialização em idiomas. Sandberg ajudou a defender a ideia da terceirização, disseram eles, e os gerentes de nível médio lidaram com os detalhes.

Em 2010, a Accenture assinou um contrato de contabilidade com o Facebook. Em 2012, esse contrato se expandiu para incluir um acordo para moderação de conteúdo, especialmente fora dos Estados Unidos.

Naquele ano, o Facebook enviou funcionários para Manila, nas Filipinas, e Varsóvia, na Polônia, para treinar os funcionários da Accenture na classificação das postagens, disseram dois ex-funcionários do Facebook envolvidos na viagem. Os funcionários da Accenture foram treinados a usar um sistema de software do Facebook e as diretrizes da plataforma para deixar o conteúdo ativo, retirá-lo ou escalá-lo para revisão.

Equipe dedicada

O que começou como algumas dezenas de moderadores da Accenture cresceu rapidamente.

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Em 2015, o escritório da Accenture na área da baía de São Francisco montou uma equipe, de codinome Honey Badger, apenas para atender às necessidades do Facebook, disseram ex-funcionários. A Accenture passou de fornecer cerca de 300 trabalhadores em 2015 para cerca de 3 mil em 2016. Trata-se de uma mistura de funcionários em tempo integral e contratados, dependendo da localização e da tarefa.

O Facebook também espalhou o trabalho de conteúdo para outras empresas, como Cognizant e TaskUs. A rede social agora corresponde a um terço dos negócios da TaskUs, ou US $ 150 milhões por ano, de acordo com documentos regulatórios.

O trabalho era desafiador. Embora mais de 90% do material questionável que passa pelo Facebook e pelo Instagram seja removido pela inteligência artificial, os trabalhadores terceirizados devem decidir se retiram do ar as postagens que a inteligência artificial não detecta.

Eles recebem uma pontuação de desempenho que se baseia na análise correta das postagens em relação às políticas do Facebook. Se cometerem erros mais de 5% das vezes, podem ser demitidos, disseram os funcionários da Accenture.

Custos psicológicos

Na Accenture, os funcionários começaram a questionar os efeitos de ver tantas postagens odiosas.

Em Dublin, um moderador da Accenture que vasculhava o conteúdo do Facebook deixou uma carta de suicídio sobre a mesa em 2018, disse um conselheiro de saúde mental que esteve envolvido no episódio. O trabalhador era considerado sadio.

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Joshua Sklar, moderador em Austin que saiu em abril, disse que revisava 500 a 700 postagens por turno, incluindo imagens de cadáveres após acidentes de carro e vídeos de animais sendo torturados.

“Um vídeo a que assisti era de um cara que estava se filmando estuprando uma garotinha”, disse Sklar, que descreveu sua experiência em uma postagem interna que mais tarde se tornou pública. “Era simplesmente horrível”.

Se os funcionários contornassem a cadeia de comando da Accenture e se comunicassem diretamente com o Facebook sobre problemas de conteúdo, eles corriam o risco de serem repreendidos, acrescentou ele. Isto deixava o Facebook mais lento para aprender e reagir aos problemas, disse ele.

O Facebook disse que qualquer pessoa que filtre conteúdo pode escalar as preocupações.

Outro ex-moderador em Austin, Spencer Darr, disse em uma audiência judicial em junho que o trabalho exigia que ele tomasse decisões inimagináveis, como deletar um vídeo de um cachorro sendo esfolado vivo ou simplesmente marcá-lo como perturbador. “O trabalho dos moderadores de conteúdo é impossível”, disse ele.

Em 2018, a Accenture introduziu o WeCare - políticas que, segundo os conselheiros de saúde mental, limitavam sua capacidade de tratar os trabalhadores. Seus títulos foram alterados para “coaches de bem-estar” e eles foram instruídos a não fazer avaliações psicológicas ou diagnósticos, mas a fornecer “apoio de curto prazo”, como fazer caminhadas ou ouvir música relaxante. A meta, de acordo com um guia da Accenture de 2018, era ensinar aos moderadores “a responder a situações e conteúdos difíceis”.

Jones, da Accenture, disse que a empresa estava “comprometida em ajudar nosso pessoal que faz este importante trabalho a ter sucesso profissional e pessoal”. Os trabalhadores podem consultar psicólogos externos.

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Em 2019, o escrutínio da indústria estava crescendo. Naquele ano, a Cognizant disse que estava deixando de fazer moderação de conteúdo depois que o site de tecnologia The Verge descreveu os baixos salários e os efeitos na saúde mental de trabalhadores em um escritório no Arizona. A Cognizant disse que a decisão custaria pelo menos US $ 240 milhões em receita e levaria a 6 mil cortes de empregos.

Debate interno

Na Accenture, o debate interno sobre os contratos do Facebook se estendeu por várias reuniões, disseram ex-executivos.

Em dezembro de 2019, a empresa criou um relatório legal de duas páginas para informar os moderadores sobre os riscos do trabalho. O trabalho tem “o potencial de impactar negativamente sua saúde emocional ou mental”, afirma o documento.

Em outubro do ano passado, a Accenture foi mais longe. Pela primeira vez, a consultoria listou a moderação de conteúdo como um fator de risco em seu relatório anual, dizendo que ela poderia deixar a empresa vulnerável ao escrutínio da mídia e a problemas legais. A Accenture também restringiu novos clientes de moderação, disseram duas pessoas com conhecimento da mudança de política. Todos os novos contratos exigiam a aprovação da alta administração.

Mas algumas coisas ficaram intactas, disseram eles. Entre elas, os contratos com o Facebook. No final das contas, o cliente era valioso demais para ser abandonado. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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